um modo de chegar à certeza de outro copo
Nem tudo são tristezas, claro que não, e
não somos sempre irónicos. Há por vezes uma beleza
deslumbrante numa voz que chora, um lamento
reconciliou-nos tantas vezes com a vida de uma forma
que nunca um sorriso seria capaz. E acima de tudo a música,
a que mais nos entretém com o olhar sobre o vazio,
dificilmente seria mais vezes essa que nos faz suar
e nos vence ou esgota pelo cansaço.
Cada um compila as suas cassetes e cansa os seus desgostos
com os gostos musicais. Essas canções
que nos salvam do ruído da consciência também desculpam
um movimento, um deslize ou um passo de dança que é sempre
um passo em falso mas que, num momento impreciso,
sabe-nos melhor que nada, como se afinal estivesse nisso
toda a vida que nos sobra quando se torna evidente
isto de sermos todos breves discrepâncias na linha
longa, exacta, da morte.
Estas canções tantas vezes de amor (isso que também
já não existe) aliviam um pouco a rígida imobilidade
em que nos deixamos desfalecer e convertem
os últimos dias à possibilidade, até ali improvável, de uma espécie
menos delirante de felicidade, acompanhada de um licor doce
e de todas as memórias que retemos nos lábios
enquanto o calor se ausenta com os corpos que emigram
para outras formas mais concretas de fazer o silêncio.
Assim entre as notas tímidas de um verdadeiro poeta
que toda a vida soube estar calado debruçando-se sobre um piano
cada vez maior e mais negro, estende-se por fim o lençol branco
sobre as nossas tranquilas cabeças e o fade out consegue
dar uma sensação de que tudo acabou bem.
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