sexta-feira, março 07, 2008

I always play Russian Roulette in my head

todos os vocativos repercutem um eu que vagueia
entre ficções, recolecções, memórias adulteradas e um momento inconstante
encadeado no escuro que o espelho reflecte
é o teu rosto que se assemelha a um abismo, segues
pedindo boleia a estranhos entre vales cada vez mais estreitos
onde se confundem o sol e a lua num equinócio intransponível
de longe vem um alarde, quando encontras o motivo da agitação
afinal não passava de outro equivoco
patrocinado pela fraqueza de um cansaço que começa a inventar
o oásis no deserto, bebem e banham-se na areia, entre miragens secas
que atraem cada vez mais gente
e vai ficando apenas uma fronteira para se resguardarem
coleccionadores de objectos de rara beleza, cores que eclodem
no sabor intenso dos frutos, flores e outros apêndices
onde vêm adormecer as criaturas metamorfoseadas

nas margens de nada resiste-se mal, injectam-se
contra as paredes sombras ilícitas, corpos derramados
sobre paisagens ácidas, as fotocópias dos dias lançadas ao fogo
e no recreio, num processo rotativo, as inflamáveis crianças brincam à inconsciência
quando a uns passos dali, através de uma passagem escura
se improvisam abandonos, a sarjeta recolhe inúmeras patologias
anjos destroçados, imigrantes, refugiados
rostos que expressam uma dor clandestina
e é tão mais fácil aqui desistir
deste vício de estarmos vivos

apesar do que possa parecer-te
não são os marginais que inspiram estes versos
são simplesmente aqueles que se deixam afectar
infectar pelas doenças que consomem a sensibilidade
e o bom senso, aqueles que não ficam loucos parecem loucos
enquanto, meticulosa, a morte espreita e vai tomando notas
decorando os movimentos e hesitações de cada corpo distraído
e se apodera aos poucos dos sinais respiratórios, o ritmo
e a música à qual todos respondem e dançam
pela noite dentro, esta coreografia sistemática, o medo e as suas vertigens
os mais ínfimos detalhes que me lembram a inutilidade
de tudo isto

já nada nos pode devolver a nós próprios, nem o verso perfeito
está na tua e na minha lista de contactos
aquele traficante de drogas mais ou menos leves
que vai escrevendo poesia nos intervalos, enquanto espera por um cliente
a polícia já o prendeu um bom número de vezes
um dia o sistema penal irá tratar o seu caso com toda a deferência
e aí os seus versos hão-de apodrecer entre as grades e restos de vida
partilhada pelas seringas de prisioneiros mais concretos
quanto às canções de amor, as melhores, escreve-as um rapaz
que perde o seu tempo em flirts com mulheres demasiado versáteis
meninas que escondem como podem os abusos da vida
por trás de malhas de liga leve
suportando o frio nas ruas, à espera de homens dispostos a pagar
um consolo breve, o bastante, algum alívio desta alma
reduzida aos estímulos mais básicos de uma vida sexual
mas se vamos falar de um amor menos preocupado em rimar
mais fiel e verdadeiro
há quem tenha visto essa mulher que passa os dias e noites no cais
segurando um violino invisível que conduz uma espera
através do silêncio, evocando a pureza de um sentimento
que não a levará a lugar nenhum, morrerá ali
numa apoteose para a qual não terá testemunhas

de resto quem sobra aprende a gerir uma reforma de miséria
que entre tostões contados vai servindo a cirrose, o desvaire
de uns últimos momentos quando os amanhãs já não são de confiança
e cada palavra só vale se primeiro for embebida
na lacónica ilusão das resistências
e a morte é o único tema recorrente para os vivos
um destino tão certo que se queremos mudar de assunto
acabamos por incorrer em devaneios esotéricos
um vício religioso ou um culto que nos absolva
deste pecado que é a vida ser só isto, raspas de nada
qualquer método que afinal nos ajude a esquecer
que não há respostas e que tudo é tão simples quanto parece

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