segunda-feira, março 17, 2008

Explícitos

chá, pão, manteiga e marmelada caseira, bolachas, cereais
vinho e a ocasional cerveja, vários maços de cigarros
três charros rituais e o frio da noite com o sofrimento
de uma excessiva simpatia e de todos
aqueles talentos improcedentes que nos juntaram ali
ajeitando categóricas sombras à rugosidade das paredes

desperdiçados entre infinitivos e exageros, expressões afins
corações de água e sal, diletantes, movidos pela eléctrica do elogio
contados, sempre junto aos espelhos na dismetria de um reflexo
na insustentável dilatação do tempo de presença - o actor
cairia sempre ali como uma virgula numa frase sem ideia nenhuma
num verso de loucura que se gasta
a artificialidade plástica desse útero de brincar aos artistas
criadores de um esgoto, um miasma, uma estirpe morrediça de um vírus
um vírus mole, sem efeito, sem ameaça, sem nome, sem nada

tive saudades de alguém sobre quem me pudesse reclinar
ou com quem fosse possível trocar o peso de um olhar maligno
com a cultura comum de várias dessas conversas
de teor ácido que servem para decantar
as sórdidas madrugadas onde o amor, em geral, era o termo usado
para nos referirmos àquele bar mal frequentado onde se vão despenhando
corpos em desuso, as vítimas de uma caixa de beats avariada
que obriga o mundo inteiro a suportar um ritmo impossível
a música estragada dos nossos dias

servimos os copos, não havia aliás outra forma
mais eficaz de nos distrairmos de nós próprios, da repetição
da breve memória e da mesma experiência, o explícito horror
de uma sinceridade que mais uma vez nos representava
tão tristes e sujos de igualdade, deu-me um cansaço que doía
e tudo aquilo que pude fazer foi recusar-me
a servir sorrisos por obrigação, gratuitos, os modos de boa educação
que nos ensina esta social apatia deixando-nos todos nivelados por baixo
demasiado explícitos no calor de cada gesto, quase desesperados

ouvíamos as explicações que tinham para nos dar
os peritos no esquema das coisas sem sentido, assim
educavam-nos na arte do silêncio, e não era um silêncio
que vale mais do que mil palavras mas um silêncio
de quem não precisa de acrescentar o seu buraco
ao abismo daquela mesa de carvalho abatido

isso dá-nos tempo, enquanto não te distrais com o que ainda
tens para dizer (a seguir), escutas ou finges escutar
a pior contadora de anedotas de sempre
embalada num estupor provocado pela idade e pelo vinho rasca
lembrando-nos que tudo é medo ou simples fúria
e que normalmente se morre, assim, sem querer
resvalando na limpeza de um silêncio justificado e apaziguador
enquanto uma galinha cisma perante uma linha traçada a giz no chão

lá fora havia a actividade campestre de um mundo
supostamente melhor, mas ninguém se afastaria para muito longe
nem consegui falar de fantasmas, ou de coisas estranhas que não acontecem
ficámos pela marginalidade de um convívio regular
mais nada, eu senti a tua falta, gostaria de ter sido outra vez o idiota
contra tudo e todos, mas sem ti não seria a mesma coisa
não haveria aquele sofá, o tabuleiro de xadrez
e aquela companhia apedrejada
pelo desconforto de todos, aproveitando-se de nós
para se aproximarem um pouco mais uns dos outros
bem, foi pouco mais que isso, o último a sair
apagou a luz e a chave ficou debaixo do tapete

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