quarta-feira, março 19, 2008

Episódios da melancolia

Since I am the last drunkard: I drink alone.

Malcolm Lowry
Um copo contra isto, outro contra aquilo, oscilante
a razão vai procurando o seu nevoeiro e seguindo rua acima,
cantando até desaparecer. Há dias em que apertamos
a nossa tristeza contra a de outros que por se sentirem tão sós
como nós nos acompanham nesse brinde ao esquecimento.
Mas na maioria das vezes não somos coniventes, damos por nós
num qualquer fim de tarde, com o olhar em desequilíbrio
a tentar pertencer ao mundo, debaixo de um relógio parado
o rosto cai-nos por pequenas coisas, minimais cálculos
e impressões quanto à matéria e à física que rege
tamanhos desamparos. Cabeceamos fantasmas
e vamos testando as ausências que deixaram de doer,
e as articulações entre o que só se pensa e o que se pode escrever
num poema assim. Para que serve o poema, de que nada
nos aproveitamos para o escrever?
Repare leitor que se o poema incide sobre o real
o poeta precisa de fazer um excelente trabalho de edição,
ninguém quer apenas contar corpos caídos
é preciso contagiar um sentimento, infligir dor se for preciso,
contar a história de forma a que seja bem audível o gemido...
Sentir o mundo de frente tornou-se um luxo, tudo hoje se sente
por processos de artificialidade que espremem de nós
sensações estudadas, temos hora marcada, sessões agendadas
para nos sentarmos com todo o conforto e nos ausentarmos do corpo
numa sala de clima acondicionado, com filtros e doseadores de emoção
que nos preparam para aquele clímax sensível.
Quando chega ao momento de chorar a música eleva-se,
o espectador reconhece a sua deixa e transborda
num pranto desnecessário tudo aquilo que pôde poupar
durante dias a fio, absorto na vacuidade dos seus reais,
na crónica de inevitáveis, entre os afazeres diários
que obrigam ao esforço da economia humana, sem se deixar
ficar refém dos episódios da melancolia. E o leitor, neste momento,
não deve esperar de mim, sujeito poético nesta relação,
mais do que um ponto final após esta constatação, afinal
reconheceremos os dois que como residuais subprodutos
de uma ancestral tradição evolutiva somos isto que somos
para sobrevivermos à vida como ela tem que ser. Agora
não nos venham falar em Deus, livre-arbítrio ou no perdão,
somos menos do que gostaríamos de ser mas pelo menos estamos
muito bem adaptados à merda de mundo em que vivemos.
De que outro modo, aliás, ainda haveria quem acreditasse
em paraísos e salvações? Por mais renitentes que consigamos ser
o mundo haverá sempre de nos cair em cima e atirar
várias vezes ao chão enquanto não nos matar.

Há quem reze e quem beba, há quem se junte
para qualquer um dos rituais, mas se os que rezam
julgam o mundo pelo tamanho do seu engano, os que bebem
não se cansam tanto e ao menos sabem com o que contam.
Não precisam de fingir que a vida é um grande mistério.

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