quarta-feira, fevereiro 13, 2008

Essa coisa de escrever poemas

Há mais alguém que sacode o pó da roupa, há mais um gato pardo
que não quer saber desde que lhe dêem de comer a horas,
vadio como o gato o homem que lhe mete comida no prato está velho
ali está ele sentando-se em frente a casas funerárias para pensar um pouco na vida,
entusiasmando-se por vezes e largando o banco para seguir os cortejos funerários
até lhe doerem as pernas, as costas ou o peito.
Mais tarde procura um café
senta-se de novo, acende cigarros uns nos outros,
pede um copo de whisky que nunca bebe até ao fim
e cai no bolso de outro homem sentado ali ao lado
a escrever uma coisa qualquer. Vá lá,
com alguma boa vontade,
um poema. Mais um.

Se falássemos destes nossos poetas
o que teríamos de interessante para dizer?,
o que diríamos destes efabuladores neuróticos
publicados por atacado - a maioria uns biltres,
muitos não passam de grandes apostadores na lotaria literária,
jogadores da batota, alguns exímios praticantes
de sabotagem intelectual, outros uns coitados,
artistas sem arte, pintores falhados,
fadistas sem voz, romancistas sem paciência,
o tipo de gajos que nunca tiveram muito jeito para nada,
desnecessários, desprezáveis, executáveis, silenciáveis,
e, também por isso, premiáveis mas acima de tudo
um bando de inúteis, sempre que nem nos despertam
para o carácter de urgência da vida.

Se queres falar de poetas diz-me
quando foi a última vez que um poeta
escreveu um poema?, um poema que não se entregasse
como um fruto de silêncio à afectada respiração do mundo,
à sua mobília triste, às secretárias e cómodas destas consciências furtivas
que se adormecem com a televisão ligada,
um poema que não fosse o mero reflexo de uma arbitrária insónia...
Porque esses que engravidam as horas falhas de sono
com desgarradas noções, algumas em contra-mão, entre versos
colhidos à beira das estradas
não passam de escriturários de sons surdos, de ruídos sem eco
das crónicas de mãos inábeis ligadas a espíritos cansados,
espíritos colados aos traços destes anoitecidos rostos
e aos corpos carenciados que se disformam
e constituem a clientela dos submundos nocturnos.

Espíritos assim-assim,
envolvidos em transacções de perdidos e achados,
sobras, a bagagem que atrasa os sonâmbulos quando dançam
embalados pelas canções desesperadas da morte.
A morte, a morte, a morte que chata, a morte aos pedacinhos,
nos cantos da boca, sobre a língua, contra os dentes,
na saliva que nos escorre em fios para o papel,
nos olhos pregados às órbitas da melancolia, estes olhos
buracos para meter imagens processadas com toda a lentidão
como uma apresentação em fotogramas desfocados
de um filme sem narrativa a passar em loop,
uma câmara escura
para todas as alegorias desta tristeza gratuita
que serve de argumento para as vidas série B que vivemos.

Seguimos com absoluto desinteresse as quedas dos muros de berlim,
as galas e as cerimónias dedicadas à paz e à liberdade disto e daquilo,
sevícias e fretes onde descarregamos a nossa insensibilidade mental.
Mapeamos e arquivamos todos os factos, preparamo-nos para o pior
revisitamos as últimas moradas de ex-amigos, ex-namoradas
e até pessoas com quem não chegámos a negociar uma relação,
as gentes que em algum momento se transformaram
nas irregularidades de um movimento de sombras
que temos agora como ângulos para a perspectiva
do que é estar-se mais ou menos vivo.

Somos feitos de estatísticas,
programas e actividades de inserção social, fins de fila,
e medicamentos de consolação.
Perdemos muito tempo com ilícitos menores
quase consentidos, invejamos os suspeitos do costume
e procuramos fugir à monotonia do quotidiano nas carreiras de tiro
e nas academias de ressacados onde encontramos sempre
as mesmas pessoas com as mesmas conversas.
Os tais proscritos, malditos, anónimos,
os militantes do degredo,
os clubes de fãs dos deuses exilados.

Rendemo-nos às casas de alterne, às mulheres
que se diz serem da vida e depois espiamos pecados
no fundo das igrejas, ouvindo o grupo coral
cantar com uma afinação tão ensaiada que dói
para todas estas solidões gregárias
que caminham desnorteadas, em direcção ao sul
em direcção a versos sem nenhum propósito,
caindo no interior do bolso deste homem sentado num café
e que escreve poemas assim,
às vezes pouco mais que as cinzas no cinzeiro,
às vezes pouco mais que uma réstia de whisky no copo,
às vezes menos que um matatempo, um simples jogo de palavras cruzadas.

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