a noite é conhecida das raças predatórias, frequentam-na
os corpos de sede, alucinadas silhuetas carregando arsenais
na pele, no exosqueleto, perseguem os rastos das suas presas
nas fronteiras entre a sombra e a ébria balada
onde muitos dançam e se enredam momentos antes do fim
o crime ainda é a única forma literária que dispensa manifestos,
ninguém precisa de entender a tara de um génio enlouquecido
a não ser aqueles que gostariam de copiar-lhe a técnica
ou partilhar o seu carisma
não se pode falar de genialidades sãs, cada génio carrega sobre as vértebras
o seu armário, a sanidade é condição típica de adiados cadáveres, de pré-defuntos
toda essa romaria de gente que aperta ao pescoço uma orgulhosa gravata
executando na perfeição o nó dos enforcados
e a morte, distribuída sem emoção, já se sabe o efeito que nos provoca, é a vida
(e nem tanto os vivos) que é uma merda, a morte é que é pouco cortês
quando nos surpreende num tupperware, num cruzamento, nos gânglios linfáticos
então mas para quê toda esta emergência de sacramentos?, às vezes tudo é tão óbvio
e nada explica melhor a profunda apatia que nos infecta os cromossomas
como uma acidental troca de tiros, duas mortes por engano,
vítimas do erro que é o que acabaremos por ser mesmo quando
o tempo é que nos extingue, apagando-nos de um sopro
sem nem ao menos sermos tocados
sem motivo para autópsias, processos criminais ou suspeitas,
tudo muito limpo, muito simples, muito rápido, abre-se uma cova
e joga-se lá o armário com esse único traje de uma vida inteira,
afluem acrimónias gotas de água aos olhos, como aquelas
que com menos esforço consegue suar a pele dos vivos,
a função dos vivos é mesmo essa, chorar os mortos
e coligir-lhes as esparsas memórias
para um mundo que vive suspenso
entre os seus ses e retrospectivas
a nossa literatura celebra
outras formas de dizer isto, mas no fundo todos os pontos finais
são uma vírgula para essa conclusão - aqui estamos nós, vivos por agora,
e tu o que é que pensas fazer em relação a isto?
(a tua e a minha resposta pousarão por tempo indefinido
aqui, sobre estas reticências ...)
quando muito antes de morrer desistirmos
de escrever e até de estarmos vivos, passaremos as tardes
ainda sentados com a atenção fixa em tudo o que circula
por fora de nós, além de nós e mesmo sem nós, o suave adágio
o andamento das minudências que nos precedem e excedem,
e inertes, paralelas ao corpo, as mãos
como dois telúricos moldes
serão apenas as fundações de uma casa
que aos poucos vai ficando desabitada_(ponto final)
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