terça-feira, fevereiro 05, 2008

Quejio

O ritual tinha hora marcada. Às dez da manhã
já o monte alentejano se enchia de carros, e
já a numerosa família comungava uma espécie de alegria
patrocinada por aquela estranha e ansiosa tensão.
Esfregavam-se as mãos contra o frio e a favor
daquilo que os levara a juntarem-se ali
com uma pontualidade irrepreensível.
A desculpa desta vez não era o carnaval, embora as máscaras
abrissem a desmesura dos sorrisos e a largura dos gestos
num momento que deveria merecer alguns apontamentos
de expressiva aflição, ou pelo menos alguns olhares
mais circunspectos se fosse pedir muito
rostos fechando-se em compunção.
Nada disso, fervorosa talvez seja a melhor forma
de descrever a tensão que queimava o ar,
o ânimo daquele exército disfarçado, todos
reunidos num silêncio de tal forma nervoso
que parecia soar um íntimo cântico de guerra.

As crianças não se coibiam de nada, pequenos adultos, diabos óbvios,
sem cerimónias ou qualquer tipo de protocolo despiam
a obsessiva curiosidade e estendiam a mão para tocar
na pele nua da morte. Faziam as mais absurdas
perguntas para desconversar, ou talvez me engane
e estivessem mesmo a querer meter conversa com a morte.
Puxavam a saia das mães, queriam ver os pais
assumir um papel importante na história,
definiam o horror do subtexto ignorando
com toda a arrogância infantil que nos foi característica
aquilo que nos vai conhecendo cada vez melhor, aquilo que
vai percebendo os nossos gostos, brincando com os nossos desgostos,
fazendo esboços muito precisos do escuro que nos faz tremer,
e arranjando nomes para cada medo que nos torna únicos
e tão solitários.
Os mais velhos tanto se mostravam como se escondiam,
racionavam as sensações e disciplinavam gradualmente
os sentimentos, suportando alguns sombreados, nódoas
e anotações marginais entre breves arrepios.

Estavam todos a postos quando chegou o Sr. Artur
com o outro, vinham para dar conta da parte mais suja
daquele trabalho. Sujeira em que às vezes só custa mesmo
é ver alguém tomar a iniciativa. Quando incitaram a participação de todos
foi tudo tão fácil. Em menos de nada todos os que tinham pila
estavam mais ou menos lá, para a mostrar ou, pelo menos,
para não ter que a mostrar. Algumas erecções já se notavam
nas calças, outras mais tímidas começavam a aparecer.
Foi preciso encurralar os animais, segundo o que dizia
o outro homem, na véspera, haviam pressentido a agitação
e tinham dispensado a última refeição. Estavam nervosos,
sabiam tão pouco e tão pouco era o suficiente.

Não teria sido fácil se não fôssemos tantos.
Mas atámos-lhes as patas - eles resistiam - e depois
há uma série de coisas em que este meu ano e meio de poesia
se mostra inábil para detalhar o ritmo do que sucedia.
Não tenho fita para o filme, não tenho palavras para a descrição.
Numa versão curta, puxámo-los até junto de uma árvore
e com a ajuda da pick-up içámo-los de patas para o alto.
Primeiro um, depois o outro.

Eu, sem nem ter pila que se visse, seria sempre
chamado. É o que dá ser primogénito e não-sei-quê
mais um metro e oitenta e tal com voz de homem
que é coisa que nunca quis ser. Ajudei demais -
e às tantas quis mesmo ser tão culpado quanto possível.
Estive sempre perto demais, puxei-o mais, estiquei a corda
com as mãos a arder quando foi preciso revelar o peito
para meter a faca e, deixem-me que vos diga, os dois
souberam ser mais convincentes do que qualquer actor
do cinema ou mesmo da vida.
Aqueles dois olhos tinham mais morte que qualquer par
que me tenha alguma vez dado o prazer de chorar.
Não davam prazer. O pior era ver-me ali e ao mesmo tempo
aqui, a escrever-vos este cabrão deste poema.
Todo o cinismo oportunista, toda a vã glória dos versos,
uma palavra aqui, outra ali, o exercício de procurar
tradução para aqueles gritos. E eles os dois, caramba, sabiam mesmo gritar!
Foda-se, aquilo eram gritos! Gritos de fazer sangrar os pulmões,
gritos que eu não, que nenhum de nós alguma vez dará.

As mãos já me doíam e eu sentia que as queria calejar.
Aqueles gritos, aquela certeza cheia de vontade de viver
que a maioria de nós não seria capaz de comprimir
num momento como aquele, tão derradeiro...
Era eu a procurar um eco para aquilo, a fazer os primeiros testes
com palavras, para isto, isto que é nada. E como explicar
aquela indómita vontade, apesar de toda a vulnerabilidade,
aquela sobrevivência até ao fim, como se escreve?
E depois há uma coisa, foda-se, o primeiro, o mais pequeno dos dois
com o sangue a escorrer-lhe do pescoço para o nosso alguidar
dobrou-se e bebeu do próprio sangue. Fez o meu tio Zé
comentar o meu pensamento - "olha, ele quer viver!,
está a beber o próprio sangue, ele não quer morrer..." - engolia
o próprio sangue, sabe-se lá porquê, mas aquela não era a minha,
juro que era a dele, era aflição dele. Era ele (e não eu) que, aflito,
tentava fazer alguma coisa para evitar esta coisa tão certa,
tão inevitável, tão definitiva. Em segundos vinha o estertor,
o abandono daquele corpo pendurado, aí viu-se qualquer coisa
antes da morte, depois mais uns tremores sinistros,
explicava o homem que seria o coração que
bate sempre mais um pouco antes de parar.

Além disto não me fica muito para contar, uns versos
de volta ao habitual rígido estilo; a conversa com o meu irmão,
a nossa incerteza, algumas tiradas previsíveis
em busca de alívio; o sangue que pingou sobre os ténis
e as calças; a estranha sensação de que tudo isto
tem que ser mais do que natural mesmo que não pareça.

Logo depois vieram os momentos de boa disposição. O tio Celso,
se não me engano, foi quem fez a longa enunciação das regras
nos códigos das higiénicas brigadas da ASAE
que tínhamos conseguido violar.
Serviu-nos isso e algumas coisas mais de justificação para qualquer
registo de remorso que estivesse a nublar a manhã.
Entre todos traficávamos agora impressões clandestinas
sobre essa religião parola que professam os anacoretas da saúde.
Era realmente notável o arco-íris de que se pintava o nosso luto.

Pouco depois as qualidades daqueles ex-seres-vivos eram apagadas
e ganhavam cada vez mais o aspecto do que todos os dias nos chega ao prato
e ao estômago. As suas mortes tinham-nos saciado a dormência
de estarmos tão pouco vivos, agora esperávamos
pelas febras com um gostinho de sarcasmo que agradou
ao paladar de quase todos.
Foram criados para morrer e talvez tenham mostrado
algumas objecções, mas ali estavam abertos, oferecendo
o sabor doce da carne, facilitando o rol de sonegações
que alguns de nós precisávamos executar.
Desanuviou depressa a sensação de sordícia, limpámos
os desacertos dos protótipos e projectos pessoais de memória
e a manhã de sangue molhou-nos o pão da tarde.

Depois de um poema com morte, este volta a ser
mais uma dessas invectivas elaborações que tentam fugir
à vulgaridade já que é daí que partem. Poemas de morte
cheios de sinais e reservas onde se acentuam os retratos
destas intimidades deferidas, escritos pelas personagens que
nos vamos pintando com os típicos traços de resignadas infâncias,
e os espaços brancos preenchidos pela aprendizagem,
pela técnica com que cobrimos os rastos, marcas e pistas
que conduzem à nossa simplória existência.

E, em resumo, não vamos muito além disto:
emoções de papel, estas fugas que vamos disciplinando
artisticamente. Doenças crónicas que se manifestam
através destes sintomas de agravada sentimentalidade,
colagens inúteis, o esforço de uma máquina de escrever
que finge uma caligrafia e afinal não consegue mais
que falsear surtos dramáticos e passos de dança em êxtase.
Nada tão verdadeiro como aquele grito e aquele estertor
mais intenso e real que qualquer metáfora,
mais poderoso que todo o nosso inventário de mimeses
e que qualquer elegia que nos mascare neste carnaval
onde inadaptados como somos podemos muito pouco.
Criar para matar, sermos finalmente deuses
perante a fraqueza do mundo que dominamos.

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