segunda-feira, fevereiro 25, 2008

pequenas execuções

colhendo a vida de pequenas criaturas,
preparámos instrumentos para persuadir o público -
o sangue, a gosma e os restos de insectos e repteis,
homicídios mínimos de quem ninguém se queixa
são embutidos com duvidosas misturas
de tinta em representações que devem fazer-nos esquecer
que nunca soubemos ao certo para que nos serve uma obra de arte,
muitos artistas largaram as paletes
e pegaram em armas de fogo ou objectos afiados
estiletes e lâminas para perfurar as inadiáveis vidas
com bocadinhos de violência,
pequenos cortes, tatuagens, queimaduras
e outras práticas cirúrgicas que nem desfiguram
nem cobrem cicatrizes, mas definem na pele
a antologia das nossas noites

as pálpebras ora piscam contra o cansaço
ora arrastam consigo o peso morto
de um vagabundo desses que discutia com o vento
e tinha um daqueles corações de brincar muito parecido
com o dos funcionários públicos com mulheres e filhos
contas poupança e reforma, casas e cães daqueles a pilhas
para lhes guardarem o regular medo da morte,
corações assalariados que batem mais por teimosia
que por paixão e duram sempre o suficiente,
menos responsáveis do que pensam, dadores de esperma
orgulhosos por contribuirem para o devir incerto
que se apagará no cinzeiro de amanhã

instigados pelo silêncio somem-se
gastando a consciência que lhes resta
em subterrâneos imaginários, aumentam a técnica
dos gestos invisíveis, trilhos circunflexos,
a perícia na arte das irrelevâncias -
e é tão fácil apanhá-los descendo uma rua
com as algibeiras descosidas para dentro da pele
a cabeça encostada a montras de outros mundos
onde se vende a deflagração da vida-a-sério e se encontram nos cafés
colegas pirómanos, virgens aguardando a sua iniciação
incendiárias inteligências de volta das suas leituras
que servem para inspirar a besta louca,
não mais esses códigos de moralidade que mastigam e cospem
bons pais de família e todos esses corpos a caminho do desespero,
corpos ameaçados tropeçando em coisas que não existem
e que vêm tantas vezes a morrer em estranhos acidentes
ou nas mãos de doenças com nomes estrangeiros

é tão fácil despir um corpo assim
calçando o número de sapatos da sua sombra
violar o seu caminho e pressionar uma esferográfica infectada
contra a sua garganta, extraviá-lo como qualquer coisa
dessas que às vezes se perdem e chegam mesmo a desaparecer,
sem explicações, sem interrogatório, sem tirar especial gozo da situação
uma morte tão clínica como todas as outras, acontece assim
quando menos se espera

havemos de aperfeiçoar o nosso modus operandi
e plantar os cadáveres no quintal de uma velhinha crédula
a quem diremos simplesmente que estamos a instalar
um novo sistema de comunicações, e, pelo inconveniente
da nossa assídua presença que até "ajuda a acalmar a solidão"
pagaremos a breve e repetitiva conta telefónica
dividida entre dois filhos que raramente têm tempo ou paciência
para espantar o envelhecimento concreto da sua mãe

coleccionaremos pequenas caixas de fósforos
passando por muitos quartos de hotéis, avaliando a qualidade
dos sabonetes para as mãos
melhorando a escrita criativa entre obituários
e cartas de condolências, havemos de reler os clássicos
sempre em descartáveis edições de bolso, testando
a ingenuidade do mundo, teremos os nossos catálogos,
piadas cruéis e um cruzar de olhares sempre à procura
de segundas intenções, além disso, sem falhar,
todas as tardes vamos dizer adeus ao sol com um passeio
num jardim diferente, pisando as flores secas
e admirando as cores que deixam resistir o mundo

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