Para o António Ramos Pereira
Alguns dislates depois ainda nos encontraremos
nalgum ponto do mapa, prestando assistência técnica
a turistas do sentimento, transeuntes e peões perdidos,
ou algum cliente regular desta tradicional casa
onde uns vêm para morrer e outros passam a vida
à espera que lhes aconteça algo de bom,
ainda que algo assim seja só um perdão silencioso
ou um encosto onde nos possamos deixar amadurecer,
exorcizando assombros domésticos
que temos para partilhar.
Lá fora não se esgota melhor a paciência, ao longo
das estações que abrem a esta hora dividem-se lucros
entre diferentes estéticas e intenções, a morte aprecia
os rostos desfocados dos seus resistentes. Insistências tardias
acumuladas, corpos literários evanescentes - os madrugadores
misturam-se com os exemplos acabados de literatura,
seminaristas desiludidos, advogados tristes
com as suas pastas de couro e uma série de conceitos
para desviar a atenção dos prementes abusos da vida.
Um ou outro reformado fazendo as rondas;
o eventual mendigo e a sua caixa de esmolas,
curva-se e presta a atenção que lhe resta
aos ensaios juvenis da vida, caminhando para os inevitáveis
e as urgências da conformidade onde tudo se consome,
alinhados no alcantil à espera do metro que os apanhe.
Alguém cantava uma balada sobre corações
indomáveis, o ritmo lento funcionava na melodia.
Quanto à letra - pouco nos interessa, são coisas
que se escrevem desde sempre
e que ajudam a definir os contornos da voz
mas os corações não batem mais por isso,
o delírio harmonioso é o que se aproveita. Os grandes compositores
nem tinham nada a dizer, bastava sentir para compreender.
Hoje escreve-se muito e talvez isso seja só uma forma
de sentir menos.
Aos poucos ergue-se do escuro o inconsolável ritmo
deste império de desalmados, uns mais pontuais
e menos contrariados que outros, vão-se organizando
nas salas comuns, galerias, criptas, cavidades
e esconderijos. Aturam o expediente
e vão assegurando a elíptica e perpétua linha do tempo
entre mezinhas, substâncias tranquilizantes e breves alívios,
cada um vai sabendo de si, sem serem devidas explicações
desde que o trabalho no fim do dia apareça feito.
Nas instituições, sempre debaixo de apertada vigilância,
os fugitivos são soltos para que dêem as suas voltas pelo parque:
como cães necessitados de exercício matinal, sem coleira ou açaime
correm a maratona da liberdade, cansam-se e depois voltam
de sua própria vontade. São lavados, alimentados e desapropriados
de qualquer sentimento menos útil, deixam-se de revoluções
e ficam prontos para envelhecerem docilmente
- mais um dia junto com o resto do mundo.
Assistimos aos filmes que vão passando e ainda
a um ou outro documentário. O último falava de Château de Thoiry.
Outros falam de vitórias militares, retiradas estratégicas,
campos onde se ceifaram vidas para o bem relativo da humanidade,
bichos e os seus esquemas de reprodução, movimentos migratórios,
crises de hoje e de ontem, e as promessas do amanhã.
Vão-se contando os dias, tomando estimulantes,
fumando marijuana no sotão do sotão, baloiçando
algures nos psicotrópicos da inconsciência,
capturando aranhas fluorescentes e pisando
formigas que gritam - todas muito dramáticas
no momento em que morrem esborrachadas.
Embalamos as mãos em furtivas sincronias,
desenvolvemos estudos comparados entre isto
e aquilo. Escatologias, piadas para cérebros queimados
e pouco exigentes, cânones para aproveitar à vida dos outros,
enquanto nós fugimos e fugimos, e estamos sempre de volta
a este lugar conveniente que vai dizendo alguma coisa
sobre quem nem tentamos ser e do serviço e dos bens
que nos fazem menos mal do que querermos ser saudáveis,
males benéficos por assim dizer, nos quais despendemos
a totalidade das nossas insuficientes mesadas.
Agora há pouco entrou por aqui adentro
uma presença dificilmente postergável - alta, olhos verdes
(experientes em penetrações), cabelos escuros,
pernas descobertas, longas e belas em remate
num par de sapatos vermelhos. Não acende um cigarro,
talvez porque a lei já não o permita ou talvez porque não fuma
e prefira ser saudável. Pede uma água natural e um café,
passa em revista o rico painel de manchas que
depois de sucessivas lavagens
se tornaram importantes para o orgulho deste sítio,
repara em mim finalmente e sem cerimónia
esgueira-se, percebe uns versos, pede para ler o poema
e eu, sem saber dizer-lhe não, estendo-lhe a folha
e mais qualquer coisa que ela lê inexpressiva.
Depois sorri e pergunta: "pensas matar alguém?"
a isto respondo (tentando ao mesmo tempo
parecer sincero e normal):
"quem sabe um dia, mas primeiro
preciso de um plano."
2 comentários:
"embalamos as mãos em furtivas sincronias,
desenvolvemos estudos comparados entre isto
e aquilo, escatologias, piadas para cérebros queimados
e pouco exigentes, cânones para aproveitar à vida dos outros
enquanto nós fugimos e fugimos, e estamos sempre de volta
a este lugar conveniente que vai dizendo alguma coisa
sobre quem nem tentamos ser"
quem é que te contou?
"deixam-se de revoluções
e ficam prontos para envelhecerem docilmente
mais um dia junto com o resto do mundo"
idem.
Esqueci-me: está genial, para variar, e obrigado.
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