domingo, janeiro 13, 2008

Perséfone a errante

Na primeira versão, Perséfone
é roubada à sua mãe
e a deusa da terra
castiga a terra - o que é
consistente com o que sabemos do comportamento humano,

que os seres humanos tiram uma profunda satisfação
de magoarem, particularmente
de magoarem inconscientemente:

podemos chamar a isto
de criação negativa.

A incursão inicial
de Perséfone no inferno continua a ser
contestada entre estudiosos que discordam
sobre as impressões da virgem:

será que colaborou no seu rapto,
ou terá sido drogada, violada contra a sua vontade,
como acontece vulgarmente hoje em dia às miúdas modernas.

Como é bem sabido, o regresso do ser amado
não apaga
a dor da perda do ser amado: Perséfone

regressa ao lar
com feridas de sumo encarnado como
uma personagem de Hawthorne -

Eu não estou segura de se devo
manter esta palavra: será a terra
o "lar" de Perséfone? Sentir-se-á em casa, digamos,
na cama dos deuses? Será que ela
não terá já um lar? Será que ela
se tornou uma errante, por outras palavras
uma réplica
existencial da sua própria mãe, menos
afectada pelas concepções da causalidade?

É tua a prerrogativa de não gostares
de ninguém, sabes disso. Os personagens
não são pessoas.
São aspectos de um dilema ou conflito.

Três partes: da mesma forma que a alma se divide,
ego, superego, identidade. Também

há três níveis no mundo que conhecemos,
uma espécie de diagrama que separa
o céu da terra, e a terra do inferno.

Tens de perguntar a ti próprio:
onde é que está a nevar?

Branco de esquecimento,
de sacrilégio -

Está a nevar na terra, diz o vento frio

Perséfone está a fazer sexo no inferno.
Contrariamente ao resto de nós, ela não sabe
o que é o inverno, apenas que
é ela que o causa.

Está deitada sobre a cama de Hades.
Que ideia lhe passa pela cabeça?
Estará assustada? Será que alguma coisa
lhe afastou a ideia
da cabeça?

Ela sabe que na terra
são as mães que mandam, pelo menos isto
ela sabe de certeza. Ela também sabe
que já não é aquilo a que se chama
uma miúda. Quanto ao encarceramento,
ela acredita

que tem sido uma prisioneira desde que é uma filha.

As terríveis reuniões que a esperam
vão tomar-lhe o resto da vida.
Quando a paixão pela expiação
se torna crónica, impulsiva, já não se escolhe
a forma como se vive. Não se vive;
não se tem a opção de morrer.

Vagueias entre a terra e a morte
que acabam finalmente
por parecer estranhamente semelhantes. Os estudiosos dizem-nos

que não faz sentido tentar perceber o que desejas
quando as forças que sobre ti contendem
são capazes de te matar.

Branco de esquecimento,
branco de segurança -

Eles dizem que há uma fissura na alma humana
e que esta não foi feita para pertencer
por inteiro à vida. A terra

pede-nos que neguemos esta fissura, uma ameaça
mascarada de sugestão -
como vimos no conto de Perséfone
que deveria ser lido

como uma discussão entre a mãe e o amante -
a filha não passa de carne.

Quando a morte a confronta, ela nunca esteve perante
os pastos sem a presença das margaridas.
Subitamente ela já não canta
as suas canções descomprometidas
exaltando a beleza e fecundidade
da sua mãe. Onde está
a fissura, está a cisão.

A canção da terra,
a canção da mítica visão da vida eterna -

A minha alma
estilhaçada pelo esforço
de tentar pertencer à terra -

O que farás tu,
quando chegar a tua vez no campo perante os deuses?

- Louise Glück

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