é sempre de um mito que se parte, de uma velha história
qualquer coisa que nos precede, para finalmente
nos instalarmos, e fazermos o mundo chegar aqui, até nós,
até ao nosso pequeno ponto de exclamação,
mais um umbigo a querer um lugar na narrativa
a bater o pé enquanto joga imprevisões na boca do acaso
qualquer coisa serve, os lugares de dentro que sufragamos
as raparigas de olhos verdes, rostos pálidos com insinuantes
sardas e os cabelos negros, como mais gostamos de as inventar
e claro os assassínios brutais que premeditamos
por razões que concernem mais ao estilo que à colecção
das nossas tragédias pessoais, tudo isto serve não para reflectir
nem tanto para perceber melhor os processos da vida inclinada para a morte
mas serve-nos para pecar no papel, sem corromper as linhas do corpo
acções sem consequências, o homem coelho a correr e a saltar-nos pelos corredores da casa
e nós disparando de caçadeira, fazendo tudo em bocados
tudo para lhe espetar um tiro por entre as orelhas
ninguém gosta de criminosos, mas certos crimes têm piada
mesmo às vezes os crimes hediondos têm uma certa fulgurância
algo que nos pausa, nos faz sentir, sentir sentir sentir
é disso que eu falo, é isso que o poema, o poeta, o poeta que escreve
o poeta que lê, eu tu nós vós e eles também
é o que queremos, viver é sinónimo disso mesmo, sentir
e morrer só serve a quem já não quer sentir nada
nenhum poeta devia morrer mas todos deviam suicidar-se um dia
os burgueses em paris e os restantes na picheleira, o importante
é serem eles a escolher o momento em que já não lhes serve mais tentar
o momento em que sentem que sentiram já o suficiente
nisto o telefone, aqui mesmo (em cima da secretária), toca
e uma voz quer saber se eu estou,
e eu estou porque não desliguei o fio, porque atendi a chamada
sem pensar, num reflexo que é aquele que temos sempre que o telefone toca
e estamos aqui mesmo, para alguém e mais frequentemente para ninguém,
e eu estou também embora não queira estar quando ela me pergunta
se posso responder a um inquérito sobre a satisfação como cliente
de um filha-da-puta de um banco qualquer
apetece dizer pró caralho e desligar
e nisso às vezes ajuda o flow de um poema que estamos a escrever...
sim, é isso mesmo que faço "pró caralho!, estou a meio de um poema. e desligo
mas como estava a dizer
isto de escrever poemas
é uma espécie de contrafacção da loucura
escrevemos com as mãos a tremer de fúria
e não com a verdade a escorrer, sobre as palavras, a sua seriedade
fingimos e imaginamos com a inteligência que nos assopra a caneta
não recorremos à memória nem à vida como ela é
mas só nos movimentamos nela
porque é preciso estar vivo para se escrever
e é assim que ainda não havendo feito
aquela viagem à Índia e nunca tendo visto
um tigre à-vontade esticando-se todo na sua selva
todas as manhãs tomo banho e penso
e enquanto penso vou afogando
uns três ou mais tristes tigres na banheira
e quando altas e sombrias figuras me batem à porta,
a meio da noite, pedindo para me entrarem nos sonhos
eu deixo-as, mas cobro depois direitos de autor sobre elas
amachucando-as nos meus poemas, maltratando-as
como personagens desta história que vos escrevo.
Sem comentários:
Enviar um comentário