segunda-feira, janeiro 21, 2008

A marcha dos pinguins

Um anfiteatro, uma recepção e a atender
uma senhora a quem já não se pergunta a idade e que
consome, com garantido desperdício, tanto tempo
quanto seja possível, descascando a paciência de quem
tem finalmente tempo livre para pensar na hora da morte
sentado numa sala de espera num dia e num horário
supostamente útil - para quê a pressa, tenha c-a-l-m-a...
Com uma espécie de dor anestesiada, os olhares
aguardam cruzando-se entre desconfortáveis arremedos,
trocando expressões de resignação, já se sabe que
não vale a pena reclamar do ritmo triste e afectado
das coisas, dos escrupulosos meneios ou dos gestos
pesarosamente burocráticos. Há na parede
um relógio enorme que vacila recuando um pouco
antes de vomitar mais um minuto, na mesa
há revistas que confirmam toda a insipidez
desta doentia trama e, entre os bancos e o nojo,
alguns vasos para a flora marginal, plantas
meio artificiais, carnívoras,
parecem deitar a língua de fora
para capturar pequenas existências voadoras.

Alguns aproveitam o tempo discretamente:
um casal discute desapaixonadas hipóteses
sobre a partilha dos gastos mensais;
duas mulherzinhas a um canto,
com os livros e os apontamentos,
estudam para os exames de neurologia e
perdem a convicção de que serão algum dia
capazes de descodificar a origem
das neuroses que nos afligem, esquecendo mesmo
a possibilidade de virem a perceber como se instalam
as ilusões nocivas que as fazem correr atrás
de uma vida que não dá muitas chances à vida;
uma jovem com um código de vestuário
simplesmente negro, esforça-se por se concentrar
num pedaço de confirmada literatura (Cadernos
do Subterrâneo
, de Dostoiévski - edição de bolso).

Do outro lado, ocorrem as sessões
de descontinuada terapia, com atraso
vão sendo chamados os nomes,
soando de forma estranha no tom monocórdico
da assistente que dá licença aos pacientes
para entrarem no consultório, onde
homens (e às vezes mulheres) perfurados
pela crise de meia idade, com as paredes
cuspindo os títulos e diplomas, por fim os recebem.
Pesa-lhes, por dentro, uma experiência de anos,
contados até ao dia da reforma,
que os tornou cínicos quanto à capacidade funcional
da sua actividade prática. Exercem a profissão
mais por hábito ou necessidade, nalguns casos
para controlarem os seus próprios impulsos,
pacificando demónios, ou alimentando
tendências voyeuristicas, e as mais variadas
carências do foro fantasioso.

Tratam tudo, o que tem cura e o que não tem,
depois inscrevem os seus zelozos clientes
noutras listas de espera, sem lhes darem
uma perspectiva para a vida, apenas um rebuçado
e umas palavras ensaiadas com o sorriso
fazendo-os ingressar novamente no processo cansativo
de atenuar a marcha possessiva e violenta da morte.

Sem comentários: