terça-feira, janeiro 08, 2008

Guestroom

quilómetros em sucessão no escuro finalmente
dilacerados por inscrições em néon
cortando uma saída na estrada
um desvio sem intenções para uma vila sem futuro
onde os vivos que ainda não se esqueceram de viver
se ocupam com a dissecação de espíritos
alguém fica sempre à espera dos estranhos cansados
procurando um leito para despedir o sono
tristes e arrumados os quartos numerados
são o espaço predilecto para as assombrações
de mentes que continuaram ligadas
algures
o hóspede do último corpo da noite
atravessa o mais estreito e longo corredor
visionando quadros de períodos não estudados
marcas de terríveis indecisões
impressões de esperma nos umbrais
coitos interrompidos, o onanismo dos suplicantes
suspiros da carne sem consolo, vexada
entregue aos exercícios viciosos
das perversões na loucura da carência
sinais de luta, rasgões na envelhecida pele desta pensão de duas
ou três estrelas, vêem-se sinais das presas
a força das asas dos morcegos que passam por ali
desgrenhados ratos balouçando nas sombras
por vezes na antecipação um susto
o grito pavoroso
de restos das orgásticas mulheres
incluídas no pacote dos quartos inferiores, alugados à hora
um gato demasiado preto aparecendo e desaparecendo
controlando os mais pequenos incidentes, porteiro
entre o mundo de cá e o de lá
na sala um velho piano de cauda com os contornos
fundindo-se na penumbra, as teclas descobertas
parecem ser tocadas todos os dias
uma inaudível composição paira um pouco acima dos sentidos
um requiem em memória das presenças levadas
ao fundo há uma pequena biblioteca, as estantes vestidas de pó
encerram títulos tão clássicos que não precisam ser lidos
uma colecção formal dos volumes mais emprestados ao esquecimento
ao longe sempre o vulto alvadio de uma musa
lábios de uma cor purpúrea soletrando
os recantos adormecidos da noite
sibilando
no ouvido do hóspede levemente carregado para além das tradições do medo
para além dos arrepios provocados pela pena de Anjos negros
exilados neste lugar bem perto do fim do mundo
escrevendo os opúsculos das naturezas mortas
os labirintos onde se gasta a corda que deus deu aos homens
em frente à secretária a cadeira o espaço o lugar de um corpo
a pena mergulhada na tinta negra
negra como as linhas densas da noite
a noite escura de sucessivas escuridões
a noite cultivada pelas mãos cegas
pelas mãos que só conhecem a letra das trevas
e num momento em que se quebra a inspiração
o hóspede cruza-se com o fantasma
antes de regressar ao seu quarto
onde o aguarda um sono sem sonhos

Sem comentários: