domingo, janeiro 20, 2008

foi ficando realmente tarde, e esperou-se pela hora
em que só não dormem os surdos, os cegos e os mais desconfiados
entre o lixo que escapa à recolha
alguém esperava na doca nebulosa
a monstruosa criança que apareceria com o nome da noite
na boca e com os seus dedos para a contagem do último prazo
ao mesmo tempo em que um bebé nascia já em choro
com terríveis dores de estômago
na maternidade de são gabriel em frente
à cervejaria portugália, na freguesia
de são jorge de arroios

doía-lhe a curva do mundo nas costas do homem
uma incisão na metalúrgica sensibilidade da sua pele
a oferenda de sangue, a pestilência no olhar dos servos
preparando a contaminação dos céus e o envenenamento
do horizonte para o naufrágio de todas as embarcações
a coroação das velas negras
pelos traficantes de armas, músicos, poetas, profetas
piratas modernos traçando mapas do tesouro
para assinalar o esconderijo do ouro e do silêncio
num labirinto para a perdição dos crentes

no metro o velho estropiado que costumava estender a mão
esfrega a lâmpada de um génio que sonha com o fim do mundo
um judeu envolvido na administração de um banco paga
uma cirurgia para concertar as feições do mendigo
que já deu provas das suas capacidades divinatórias,
ao entrar no bloco operatório embriagado, delira
roga pragas e grita: eu não quero anestesia
eu quero desmaiar de dor, quero que uma apoplexia me atinja os nervos
me arranque desta terra que quer sugar-me os pés e fazer deles raízes

a pintura impressionista de uma princesa, virtuosa
a mulher, a virgem apelidada de puta
pelas razões mais simples, aquelas que explicam
que seja a generosidade o que faz das putas
as presas mais fáceis
na voragem inconsequente dos desabrigados
que remendam uma perspectiva de futuro, prescreve
toda uma cultura juvenil com preferência pelos pulsos
para a manifestação da sua expiração artística

entre espíritos desenvolvidos passa um manifesto
formam-se as fileiras de uma coisa chamada movimento
reunidos numa insuspeita catedral
um lugar de antecipação
em benefício de todas as dúvidas
que instigou em nós o poeta maldito
inspirados pela lição sobre a fragilidade do bem
recordamos o olhar de um mouro incendiado pela visão do inferno
e as flores do ciume rebentando na marcação do cadáver desse homem
vendido como escravo para o projecto do mal
atingido pela lâmina mais fria onde mais dói,
vítima da odiosa semente na mão dos miseráveis

ninguém se esquece que uma vingança começa
com a canção que embala um egoismo
uma mentira
na voz que consome primeiro a luz da vela
e asfixia depois a última chama no escuro

um príncipe afastado, o filho bastardo carregando às costas
a cruz de uma reencarnação diabólica, a armadilha de um largo sorriso
e o entusiasmo dos seus seguidores
criaturas de um género seco
bebendo o licor das falsas promessas
mensageiros de uma noite de intenso choro
o golpe, a acusação e a condenação ajustada
para uma ofensa sem precedentes
um crime inédito, um massacre
como formalidade na celebração
de um pacto de tréguas com o demónio

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