domingo, janeiro 13, 2008

Elegia cor-de-rosa

Já passou algum tempo desde que escrevi a primeira versão deste poema que, passado algum tempo, publiquei aqui no blog, já numa outra versão. Republico-o agora, revisto e modificado, acrescentando umas breves anotações aos versos que poderão ser úteis a quem desejar fazer uma leitura simbólico-literária do poema.

Sou filho daqueles que lutaram no dia 25 de Abril de 1974
Para que hoje eu possa ficar em casa, aborrecido, a escrever sobre
Aquilo que nunca vou ser.
Não sou heróico ou talvez o seja ao meu jeito.
Sou tragicómico, sou tremendamente sensacionalista,
Posso ser comprado em qualquer esquina mais ou menos escura
Desta cidade de vórtices florescentes que não me viu nascer.
Sou ideologicamente marxista, muito embora nunca tenha lido o Capital,
Muito embora todos os pares de calças que dispo a troco de algum carinho
Custem muito mais que uma noite média de amor.
Não sou como Janus, mas tenho uma máscara de múltiplas faces[i]
Pela pura diversão de iludir quem se deita ao meu lado
Ocasionalmente numa cama.
E às vezes tudo isto me faz chorar lágrimas tão fáceis
De ostentar como diamantes brilhantes ao pescoço de jovens
Nunca tão belas quanto eu. Mas a beleza é difícil[ii].
Sou como Eco que foi a primeira infeliz a sofrer de anorexia
Por motivos amorosos.
Safo não tinha razão. Ninguém no futuro há-de pensar em mim[iii].
Sou uma maçã madura[iv] que caiu longe da árvore.
Mesmo assim trinca-me.
O único caminho para o meu coração começa no centro
Da minha boca de morango[v]. E como é natural, sou sexualmente ambíguo.
Há demasiados homens e mulheres sentados à espera,
Era bom que alguns soubessem que detêm as rédeas da minha alma[vi].
Sou a parte escura de mim e é ela a que brilha[vii] incomparavelmente
Mais que um dia de verão[viii].
A solidão do meu amor é uma mecânica erótica[ix] que reproduz
Em vinte e nove espasmos o óbito celestial.
Tenho as costas arranhadas e orgulho-me. Eu próprio
Investi nisso com as minhas unhas afiadas e pintadas de preto.
Sou o meu próprio Basilisco quando me olho ao espelho,
Quando respiro no espelho[x] uma linha tão natural como
Uma árvore[xi]. Nunca me senti especial por isso.
Sou a metade da romã que Perséfone comeu[xii],
Ou seja, um campo onde só nascem flores de pétalas negras.
Não procuro algo de diferente quando saio de casa[xiii].
No entanto, espero que haja alguém capaz de
Me aliviar da enorme tragédia do meu sonho[xiv].
Como Alexandre da Macedónia, cometi o erro
De contemplar todo o meu Império demasiado cedo.
Diz-se que ele só sorriu quando Aristóteles deixou
De lhe corrigir a postura no cavalo.
Mas eu estou a sorrir mais do que Churchill, mais do que a Monalisa.
Quase três mil anos depois
Já ninguém me pode ensinar a forma unânime e
Democrática de roubar a virgindade a adolescentes
Que, à falta de melhor, se consideram criadores dum
Verbo poético capaz de todos os sentidos[xv].
Serei o único a achar que Lautréamont e Sade não escreveram coisas
Mais interessantes que Perez Hilton?
Sou nuclear, irregular, pornográfico, luminosamente imoral.
Sou uma princesa enfadonha, demasiado esquizofrénica
Para aparecer na capa das revistas. Mas eu apareço na capa das
Revistas e faço-o sempre com tanta mediocridade
Que nunca houve nem haverá alguém igual a mim.
Não tenho egrégios avós. Escrevo esta nova bíblia
Para góticos, vegetarianos, praticantes da Cabala sejam
Ou não assumidos, modelos esqueléticas, adoradores de deuses de carne,
Poetas pós-modernos viciados em MD, actrizes lindíssimas em reabilitação,
Freiras prontinhas a assumir a aparição de Jesus Cristo entre as minhas pernas.
Eu vi CSS no Lux dia 4 de Abril de 2007 com os lábios pálidos e quietos,
Como quem pretende passar a imagem de que é
Demasiado irreverente para se deixar absorver pela música.
O meu sangue é da cor deste poema e este poema não é um anjo neutro.
Ninguém me acompanharia ao Père Lachaise para depositar
Folhas mal esquecidas no cimo da tumba do poeta
Guillaume Apollinaire do qual ouvi dizer coisas muito mais
Maravilhosas do que as que ele escreveu.
Sou o processador de textos mais ilógico da minha geração,
Talvez seja o único que o faça, parente pederasta
De todos aqueles que não conseguiram mais do que adaptar
A Portugal ao federalismo do consumo literário.
Lá em Lisboa, Lá em Lisboa tudo o que fiz foi morrer[xvi].
Nunca passou pela minha cabeça que esta cidade, tal sereia,
Pudesse convencer tantos a afogar-se nas profundezas do rio[xvii],
Eu até tenho medo de me fundir com pessoas nas ruas em Lisboa.
Não sei se hei de parar no inferno só para beber uma cerveja
Ou ficar por lá uma temporada.
Só por vaidade pus o nome de Salomé à minha gata
Que pariu um gato anónimo que nasceu já morto.
Não tenho outra ilusão que acordar. À parte isso,
Tenho em mim todos os sonhos eróticos deste mundo[xviii].
Sou uma abelha[xix] que devora o teu mel em quantidades orgásmicas.
Como os gregos, escrevo fragmentos tão insignificantes como:
Fugi dela como um cuco[xx].
Sei duma música que acalma as aves. Não decidi ainda é se
Vou tocá-la numa harpa ou numa flauta[xxi]. Tanto faz, sou
Demasiado revolucionário e agitador para me preocupar com isso.
Sou moderno e o mesmo é dizer que morri muito antes de ter nascido.
Rilke devia estar a pensar em mim quando escreveu
Que todo o Anjo é terrível[xxii].


[i] A alusão a uma única máscara de múltiplas faces não é inocente. Utilizar uma máscara, dum ponto de vista psicológico, é semelhante ao que um actor na faz representação teatral quando assume uma personagem (v. David Gattegno, Símbolos, 2000, p. 81). Assim, uma só máscara, mas com múltiplas faces, traduz a indefinição comportamental incita no poema, bem como uma certa androginia psicológica. Tal como no acontece no mito de Morfeu, esta diversidade de faces (aparências) tem uma dimensão onírico-sedutora.

[ii] Ezra Pound, Os Cantos Pisanos, Canto LXXIV:
“«a beleza é difícil» disse Sr. Beardsley”

[iii] Safo:
“Tu podes esquecer, mas deixa-me que te diga o seguinte: alguém no futuro há-de pensar em nós.”

[iv] Longe de representar uma referência à famosa maçã de Safo – leitura que poderia ser sugerida pela sequência dos versos 19 e 20 –, realça, antes, a simbologia marcadamente sexual-feminina sugerida pelo aspecto visual do fruto, especialmente quando seccionado ao meio (v. Jack Tresidder, The Huntchinson Dictionary of Symbols, 1997, p. 15 e Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, 1982, pp. 776 e 777).

Friedrich Hölderlin, A Morte de Empédocles:
“Atrai-vos o fruto que tomba no chão por estar maduro,
Porém acreditai em mim: nem tudo para vós amadurece.”

[v] Charles Baudelaire, Les Métamorphoses du Vampire:
“La femme cependant, de sa bouche de fraise
En se tordant ainsi qu’un serpent sur la braise”

O morango aparece como símbolo do prazer carnal, como nas pinturas de Bosch (v. Jack Tresidder, The Huntchinson Dictionary of Symbols, p. 193)

[vi] Anacreonte, fr. 360 a PMG:
“Jovem de olhar inocente,
procuro-te no meio das outras pessoas,
mas tu não reparas,
pois não sabes que deténs as rédeas da minha alma.”

[vii] John Milton, Paradise Lost, Book I, 22-23:
“what in me is dark
Illumine”

[viii] William Shakespeare, Sonnet 18:
“Shall I compare thee to a summer’s day?”

[ix] Jean-Arthur Rimbaud, H:
“A sua solidão é a mecânica erótica”

[x] Espelho aparece com um duplo significado: um prático, numa clara referência ao consumo de cocaína; e outro simbólico, claramente relacionado com o primeiro, e que se traduz numa visão do espelho como uma porta para um mundo paralelo, tal e qual acontece em Alice nos País das Maravilhas (v. Jack Tresidder, The Huntchinson Dictionary of Symbols, pp. 134 e 135).

[xi] Álvaro Campos, Ode Triunfal:
“Um orçamento é tão natural como um árvore”

[xii] A metade da romã a que o poema faz referência, reporta-se, aqui, à tradição de que Perséfone passaria seis meses junto de Hades e seis meses junto de Deméter, não aludindo, propriamente, ao episódio em que Perséfone da romã (ou sementes de romã) oferecida por Hades. Ao mesmo tempo, a meu ver, simboliza também uma escolha pela sedução do lado infernal, igualmente patente noutros versos deste poema. Noutra perspectiva, pode significar o elemento feminina, uma vez que a romã, na antiguidade, era um importante símbolo de fertilidade, muitas vezes ligado aos ritos matrimoniais (v. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, pp. 484 e 485).

[xiii] Friedrich Hölderlin, Pranto de Ménon por Diotima:
“Todos os dias saio em busca de algo diferente”

[xiv] Friedrich Hölderlin, Pranto de Ménon por Diotima:
“Assim parece, e não haverá ninguém
Que possa aliviar-me da tristeza do meu sonho?”

Ezra Pound, Os Cantos Pisanos, Canto LXXIV:
“A enorme tragédia do sonho nos ombros curvados do campónio”

[xv] Jean-Arthur Rimbaud, Alquimia do Verbo:
“gabei-me de ter criado um verbo poético capaz de todos os sentidos.”

[xvi] Jack Kerouac, Pela Estrada Fora, 2003, p. 209.

[xvii] T. S. Eliot, The Waste Land, 63:
“I had not thought death had undone so many”

Este verso de Eliot é, por sua vez, inspirado num verso da Divina Comédia de Dante Alighieri (v. T. S. Eliot, Notes on The Waste Land).

[xviii] Álvaro de Campos, Tabacaria:
“À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”

[xix] Usa-se abelha enquanto símbolo de fertilidade. As sacerdotisas de Deméter, em Elêusis, eram conhecidas como abelhas (v. Jack Tresidder, The Huntchinson Dictionary of Symbols, p. 22).

[xx] Anacreonte, fr. 437 PMG.

[xxi] É famosa a oposição mitológica entre os instrumentos de corda e os instrumentos de sopro, resumida no episódio do duelo entre Apolo e Mársias (v. Vasco Graça Moura, Camões e a Divina Proporção, Lisboa, 1985, pp. 241 e ss.).

Dante Alighieri, Paradiso, I, 19-21:
“Entra nel petto mio, e spira tue
sí come quando Marsïa traesti
de la vagina de le membra sue.”

A propósito da oposição corda/sopro, Luís de Camões, Écloga dos Faunos:
“ou por não ver soar a frauta ruda
o que a sonora cítara merece”

[xxii] Rainer Maria Rilke, A Primeira Elegia:
“Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.”;

A Segunda Elegia:
“Todo o Anjo é terrível. No entanto, ai de mim!
pelo canto vos invoco, aves da alma quase mortais,
por saber o que sois.”

1 comentário:

Anónimo disse...

Walk in silence,
Don't walk away, in silence.
See the danger,
Always danger,
Endless talking,
Life rebuilding,
Don't walk away.

Walk in silence,
Don't turn away, in silence.
Your confusion,
My illusion,
Worn like a mask of self-hate,
Confronts and then dies.
Don't walk away.

People like you find it easy,
Naked to see,
Walking on air.
Hunting by the rivers,
Through the streets,
Every corner abandoned too soon,
Set down with due care.
Don't walk away in silence,
Don't walk away.