domingo, dezembro 30, 2007

Monumentos de superstição

(é talvez madrugada em Lisboa) tomei a boleia
de uma embarcação fantasma, um barco ébrio que me levou
a paragens tão distantes como
Aden e Djibuti, Zeilah e Harar
não levei uma só muda de roupa, apenas versos incompletos
à espera de uma inspiração profusa
tomada ao eterno tom, o azul clássico,
herdeiro secreto dos pensamentos menos elaborados
tesouros de seculares naufrágios, as obras completas dos poetas malditos
que haveriam de mudar o mundo
mas que acabaram por se tornar incompreensíveis
na memória frágil dos peixes
invento-me na celebração da via, a rota dos desaires
enfant terrible, enfant prodige, trop malade
vítima da intempérie, redigindo à pressa
crónicas do outro mundo, episódios de desassossego
do ponto de vista de um protagonista sem nome,
um filho bastardo da consciência,
o típico anti-herói
pescador tranquilo dançando junto à proa no meio do dilúvio
festejando a ruína do mundo novo,
deixando para trás a pós-modernidade
os artísticos espíritos e
os corações subsidiados pelo Estado,
puto rebelde com a faca entre os dentes
a perna direita amputada, substituída por uma de pau
pronto a morrer mais pela arca que pelo ouro
recordista de delitos contra o património,
contra a gramática rígida das leis
contra a propriedade intelectual
uma carreira profissional feita de actos infames
contra essa esconsa pátria-puta, tapada de vermes,
a vulva fétida lambida pelo ascor
viver pela espada, morrer pela espada
beber uma cerveja no inferno
perder um olho, meter uma pala
perder o outro, escrever o que nunca se viu
sobreviver à tuberculose, ao escorbuto, à peste, a um linfoma
à série completa das doenças venéreas
à epidemia das cidades em luto
escrever o que nunca se viu,
porque não se pode ser mais que estas pessoas de facto
e se não podemos ser especiais, se não podemos ser
a inspiração dos novos livros de História,
sejamos no mínimo personagens interessantes
escritas com convicção, protagonistas de passagens memoráveis
em edições ne varietur muito limitadas,
e com a dignidade de verdadeiros profetas
ergueremos novas bibliotecas
publicaremos os nossos manuscritos na impressora
faremos cópias deles à mão se for preciso
lembrando o texto original de cabeça
e contemplando o mundo perfeito
a partir da casa desolada
onde entaipámos as janelas
e quebrámos todos os espelhos.

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