O excerto que se segue é retirado de um dos muitos e fascinantes relatos da autoria de Gonçalo Cadilhe, publicado na Surf Portugal e, mais tarde, editado, em conjunto com muitos outros, no livro que cedo se tornou a minha Bíblia e que, como nenhum outro, me faz sentir uma arrepiante alegria de viver - «No Princípio Estava o Mar». É muito provável que os seus textos não vos atinjam da mesma maneira que me atingem a mim, pois, arrisco eu, a maioria dos leitores não desfrutou ainda do prazer que é deslizar numa onda. «Mas o que eram inicialmente textos de surfista para surfista, tornaram-se, com o tempo, objectos de culto, lidos e comentados não apenas por corredores de ondas mas também por namoradas cúmplices, pais perplexos, professores coniventes e vários outros segmentos da sociedade fascinados com o sistema de valores recolhido no mar e sistematizado no papel pelo autor». Aqui vai, então:
«Mas um dia, por meados de Julho, as coisas passaram-se duma maneira diferente. Depois de ter feito os tais quilómetros que as gasolineiras tanto agradecem, lá cheguei a Quiaios sem outras alternativas e já pronto para arrancar com as lamentelas do costume: poucas ondas, muito crowd, paredes curtas e moles, etc, etc... Afinal, as ondas não pareciam nada más. Pelo contrário, eram excelentes, tubos e tudo. Não estava ainda ninguém a surfar e por muito que perscrutasse as dunas desconfiado, a verdade é que não via mais ninguém a preparar-se para entrar. Avancei pela praia com o fato vestido, prancha debaixo do braço e, nesse momento, despontou do meio das dunas uma colónia infantil. Vinham duma aldeiazinha do interior e talvez nunca tivessem visto um surfista. A responsável pelos meninos era uma daquelas mulheraças simples e vitais do mundo rural, uma moçoila de seios grandes e sorriso aberto, uma daquelas mães e esposas que metem ao mundo os filhos que forem preciso e atravessam a vida inteira sem uma doença, sem um queixume, sem um suspiro de arrependimento. Enfim, Portugal no seu melhor.
Apaixonei-me ali mesmo por ela e por tudo o que ela representava. Sabia que nunca mais a voltaria a ver mas isso não tinha nenhuma importância. Olhou-me nos olhos com uma luz que era a própria luz do Verão e disse para toda a colónia: "agora sossegadinhos que vamos ver o senhor a fazer surf".
Não apareceu mesmo ninguém naquela manhã em Quiaios. As ondas eram mesmo boas, tubos e tudo. Até acho que nunca fiz surf tão bem e com tanto prazer como naquela sessão. E tenho cerca de trinta testemunhas, aliás trinta "meias testemunhas" e uma testemunha que vale por duas, para confirmar que aquela manhã existiu mesmo. Ainda era só meados de Julho mas, por mim, o Verão podia ter terminado naquele dia. Eu já tinha recebido a minha parte.»
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