Pude vê-lo deitar um papel perfeitamente
dobrado para dentro do féretro. Talvez tenha escrito
que a amava ou o quanto é triste ter de enterrar
uma filha. Punham-lhe as mãos nos ombros
sobre a camisa preta, confirmavam-lhe, quase ao ouvido,
que não é natural um pai ter de acompanhar até aqui um filho
Provavelmente é verdade, mas acho que a natureza
não se compadece com a brevidade dessas palavras
e um desfile de rostos cinzentos. Isto é comigo e eu
prefiro imaginar que entraste naquele barco enorme
que ia atravessar um Oceano.
Aprendi – certamente contigo – que tocar o músculo
do coração tem uma ciência exacta, mas deve ser impossível
atingir um lugar onde já só moram uns quantos ossos.
Estou só, muito só, tenho uma lágrima na mão, mas tu
nunca mais me vais ver chorar.
Deve ter escrito que te amava. A mim resta-me cobrir
devagar as distâncias do meu quarto, acender uma fogueira
para o corpo, vender os livros, as revistas, os cadernos, todos
os papéis, pintar até as paredes de preto, para não ceder
à tentação de escrever a um morto o quanto eu também o amava.
- David Teles Pereira
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