segunda-feira, junho 25, 2007

Poesia

"Confesso que nunca achei graça à poesia de Walt Whitman, com as suas barbas democráticas e a sua empáfia disfarçada de urgência moral. Só um exemplo, extraído do seu mais conhecido livro “Canto de mim mesmo”: I celebrate my self / and what I assume you shall assume, / For every atom belonging to me as good belongs to you.

O que se passa aqui? O que terá dado a Whitman para declamar aos conterrâneos que as moléculas dele são as moléculas deles? Não deixa de ser estranho que uma pessoa queira ler poesia e apanhe com uma espécie de palestra de um pastor da IURD.

Não gosto nada de poetas profetas que ousam em dirigir-se directamente a cidadãos anónimos, como se estivessem munidos de qualquer etérea autoridade. Um poeta não é uma voz acima da multidão, que alumia o caminho e redime a ignorância geral. Um poeta é um sujeito quase sempre vicioso que ostenta um certo talento para a linguagem. Um poeta deve usar e abusar do quotidiano esquecendo outras ambições. Pode escrever sobre feriados, missas, salas de espera ou jogos amorosos. Mas não está aqui para salvar ninguém."

- Pedro Lomba



Se um poeta não te salva, mata-te
mata-te nos recantos onde esperas
as palavras inspiradas que se escondem
e podiam ainda decidir-se a aparecer
para te revelarem os segredos
da chama que há muito tempo,
antes mesmo de nasceres,
acendeu a tua vela esperançosa
e te lançou no escuro.

Se um poeta não te salva, mata-te
leva-te a paciência, esconde-te as chaves
quando estavas prestes a sair de casa
inventa labirintos, jogos do galo, sudokus
para te fazer esquecer a cabeça, e
os teus dias tornam-se viagens de meia hora
entre a cama, um olhar absorto em nada
e a secretária do teu escritório cubicular.

E quando abrirem a terra
e te atirarem lá para dentro
vai tudo o que sempre houve de ti
porque nenhum poeta te salvou,
vai o teu peso alimentar os vermes
e não sobra nada já que tu próprio
nunca quiseste que a poesia
te sugerisse as entrelinhas
do teu quotidiano

E afinal era nelas que te podias resguardar
para que não apodrecesses com esse corpo
que é só um vaso de onde te deves evadir.

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