sábado, novembro 04, 2006

À espera do romance


Um velho que andava aqui por baixo do meu prédio morreu ontem. Dizem que era mendigo mas as pessoas dizem imensas coisas e quase tudo é uma parvoíce, mesmo assim costumo escutá-las quando não sei nada de nada sobre o que falam mas eu até o via aqui por baixo, já me habituara à sua figura estranha - uma sombra no início, foi ganhando cotornos mais definidos com os vários avistamentos mas subitamente, um dia, ganhou cor e até uma certa luz especial... Nunca olhei fixamente para ele nem para os outros como ele mas no dia em que reparei aquilo que o ocupava ele deixou de ser um vagabundo qualquer, passou a ser o vagabundo ideal no meu sotão de paredes decoradas a imaginação... Vi-o a ler um livro de poemas de amor, um livro que eu tinha lido uma vez quando era mais novo, na altura não achava os poemas nada de especial, agora já acho, e voltei a ler esse livro e já o percebi melhor... Depois noutro dia vi-o a ler um outro livro, ao longe a capa era igual a tantas outras e tive que me aproximar demais para perceber o título, acho que ele reparou em mim e pôs um olhar duro nos olhos que não eram nada velhos nem sombrios mas claros, verdes. Fiquei um pouco constrangido mas percebi o nome do livro. Não sei bem porquê mas aquele olhar fez-me perder o entusiasmo e fechei o sotão por uns dias mas uma certa tarde estava sem nada para fazer e sabia que os meus pais tinham esse livro no meio do pó de outras centenas de livros escondidos na arrecadação. Fui buscá-lo, li-o, adorei, fiquei parvo, morri e morri e acho que depois nasci de novo e senti-me bem, tão bem e leve como se fosse um tipo feliz.
Muitas vezes vi o velho a ler coisas mas mais vezes o vi a escrever... Cresceu uma curiosidade tão forte em mim, sair de casa e voltar para casa já não era uma contingência da rotina eram momentos nucleares nos meus dias, eu andava excitado e envolvido nesta busca mais do que em tudo o resto que se passava com a minha vida a mais... Pensava demais, se o ia encontrar hoje ou só amanhã ou depois, porque ele por vezes desaparecia e depois lá estava outra vez, às vezes junto à porta do prédio outras vezes nas traseiras onde eu deixo o meu carro. Ás vezes ele dormia cá em baixo outras vezes dormia noutros lados mas de tanto pensar e imaginar mil conversas que nunca tivemos em que eu me apresentava e ele abria o seu mundo encantador de mistérios cobertos por uma vida madura e esperta sobre as coisas importantes da vida, acabei por não chegar perto. E depois ontem choveu e ele estava cá em baixo e morreu.
Não sei o que ele esperava ou quem ele esperava aqui à porta do prédio, sei que não era eu nem tinha nada a ver comigo a sua presença marcada aqui mas isso faz-me pensar - quem seria essa pessoa e porque o deixava à espera daquela maneira?
A maioria das pessoas diram que era apenas um mendigo mas eu sei mais.

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