segunda-feira, outubro 23, 2006
A Carta
Vida, cansei-me de ti.
O meu cálice do tédio transbordou.
Toda tu és apenas um enorme
Vácuo sem qualquer significado.
Estou farto das esperancinhas graciosas
Com que me manténs preso aos teus grilhões,
Enfastiado da tua pobre realidade,
De onde não posso fugir
Sem ser através destas letrinhas que,
Bem sei, sempre o soube,
Nada valem.
Nada.
Absolutamente nada.
Esta noite pensei em todos os sonhos
A que tu, madrasta, me impeliste.
E sorri.
Por que não me fizeste outro?
Empregado de escritório
Que sonha com o subsidio de férias?
Por que não me deixaste ser o mendigo
Cujo maior sonho é ter um par de sapatos?
Este noite, Vida, não suporto as tuas dúvidas pueris,
Estou cansado das tuas problemáticas existenciais
De adolescente de treze anos
Com o rosto semeado de borbulhas.
Não Vida, não.
Estás enganada.
Não tens treze, tens vinte seis.
Mas talvez devêssemos agir,
Uma última vez, como adolescentes.
Como aqueles adolescentes que namoram
Durante o intervalo grande,
(Aquele de trinta minutos ente as aulas
De matemática e educação física),
Nas alas desertas do liceu.
Até que um dia,
Ele percebe que é bem mais útil
Aproveitar o intervalo grande
Para jogar à bola com os amigos,
Até porque se não o fizer vai perder, para o Gordo,
O lugar na equipe de futebol da turma.
E ela percebe que aquela história
De ter hora marcada para o jogo dos beijos
Pode ser, por vezes, aborrecida.
Muito aborrecida.
Talvez devêssemos dar um tempo.
E eu, descansaria por uns tempos
Nos braços desconhecidos da morte.
E tu, dar-te-ias a alguém diferente de mim,
Alguém que te amasse de verdade,
Alguém que não merecesse ter-te perdido.
Aquele amante a quem tu abandonaste
Segundos antes de confessar
O grande amor que o percorria.
Sabias que esse amor está até hoje a ameaçar
Explodir-lhe o peito como uma granada?
Vá lá, dá-lhe uma última oportunidade…
Vida, antes olhava-te, e o brilhozinho
Bem no centro dos teus olhos, seduzia-me.
Eras fogosa. Fascinante…
Toda tu eras cor, e forma, e sonho, e luz.
Esta noite, olho-te, e o que vejo?
Um vazio. Apenas um vazio.
Estou cansado das tuas euforias,
Dos teus contentamentos impassíveis,
Das tuas noites em branco
Com a face colada à vidraça
À espera que algo que não sei o que é.
Estou farto das tuas mentirinhas,
Dos teu jogos de sorte e azar,
Farto das lágrimas que me enevoam
Os olhos. Se ao menos estivessem esburacados…
Talvez cegando consiga ver.
Vida, esta noite vou sair até de madrugada,
Não me telefones, não me procures,
Se conseguires, nem sequer penses em mim.
E quando eu regressar, cambaleante,
Se algum dia eu regressar,
Vou dormir no sofá verde-seco da sala.
Vida, acredito que sim,
Acredito que não tenhas culpa.
Talvez eu tenha mudado…
Talvez esteja diferente…
Mas estou farto,
Farto de esperar pelo que nunca acontece,
E como bem sabes,
Eu nunca gostei de esperar.
Perdoa-me Vida,
Mas esta noite,
Eu deixei de te amar.
- Gonçalo Nuno Martins
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