sexta-feira, julho 13, 2018


Os pássaros largam num grito indecifrável, as árvores estalam capazes de se desenraizar. De um quintal a outro, os frutos ardem, lançados acima dos muros com as pedras, e as nuvens atingidas encharcando as ruas. Eu só os tinha visto crescer daquela maneira ao longe, ouvido no chão, a terra telegrafando uma carga de cavalaria, os rapazes levantando o pó, ecos esmagadores. Ela garante-me que não somos vistos pelos nossos sonhos. E então foi isto o que restou do meu cavalo? Nem o selim, só uma lembrança. Ele diz-me que o seu nome só reteve da infância os reflexos de um frasco. Não sei que grilo o traz acordado até tão tarde. Ao menos eu sinto ainda a porta soprada, recobro intacta aquela manhã que fez a descoberta do canário, tenho a vista da janela emoldurada, agacho-me, finjo que sei ler rastros, sei pelo menos como de quietos caminhos inventámos os outros, da poeira erguendo-se, dos meandros de água e dentes de leão, fazíamos uma boca, interpretávamos tudo. Calados, ainda ouvimos a floresta tropeçando na flauta. Daqui, os passos já não fazem as distâncias tremer, os dias não pegam, perdi a narração. A brevidade da mão basta para medir incessantemente a distância da porta ao último jardim. Vivo dedicado a ganhos invisíveis, entre as palavras só espreito intimidades desnecessárias, a respiração épica esvaiu-se inteiramente dos nossos hábitos. Num dia bom, bêbedo de sede e de sol, sigo desconhecidos imaginando o que poderão fazer por mim. Regresso ao quarto, ao trabalho. Com a subtil reverência da abelha, estudo as leis físicas em busca da falha que me leve às outras. De resto, já só nos livros encontramos os vícios dos grandes devoradores de épocas, fumadores de ópio, os bebedores incansáveis de olhos fixos na própria morte. Não lhes sinto a falta, oiço-os bem. Mas a geração à qual pertenço é pior que nada, não deixa gosto algum. Lavo os pratos, olho para o lado, fito a expressão egípcia no rosto do gato. Dividimos tudo, ocupamos a mesma extensão. Trocamos apontamentos. Ele tem espinhas milenares escondidas nas gavetas, carcaças cintilantes de lepidópteros raros por estas partes. Um tesouro oculto que me diz muito sobre aquilo que vale a pena preservar. Como eu tenho sobre os meus papéis aquela pedra escura a alimentar-se de um velho ressentimento. Um corpo dissipado, estrela entre as minhas cinzas. Esse verso que pus de parte, em que a vejo enxugar-se da tempestade, em que o seu olor se alia singularmente à obediência da minha memória. Tudo o que aprendemos, o gole de água retido na boca enquanto morríamos de sede, esse gole que encurralamos numa frase, para deixar noutra boca o gosto de uma infância deixada para mais tarde.

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