domingo, junho 03, 2018


Só posso educar-me passando mal, a noite toda debaixo de uma pinga, falhando o pulso, como se me riscasse fora, em vez de colorir nos contornos, traz um afogamento patético, e eu já não tenho hábitos de quem acorda, tudo se atravessa, o amanhecer ainda o vejo como se o sol fosse outro vagabundo encostado para se ter direito enquanto mija, e a claridade mancha tudo, o que eu gostava de ver um indício de frescura nesta merda, leria um jornal que abrisse com laranjas esquecidas sobre o muro, ali no cabeçalho o sumo a escorrer-lhe pelos beiços, queria uns reparos miúdos sobre as coisas que tenho em volta, nada de notícias chocantes, nada de especialmente escabroso, só as referências mínimas, o básico para um tipo sentir que há mais gente partilhando esta incerteza, é o único fenómeno que eu vejo, e, de caminho, também prefiro as coisas ditas com uma sabedoria de ouvido junto à terra, "numa linda língua quadrúpede", honestamente, eu rastejo, estou com o mais baixo, o tremor seguido de um velho riacho, e sei que aí fora toda a relação com o mundo é uma coisa besta, mas então, até pela possibilidade de reintegração, era bom que se voltasse aos aspectos inegáveis, vir para o básico, para minha orientação é o que eu faço, trago uma soma na boca, a parte que posso mastigar, é às vezes o que nem se diz, para que lado me viro, o que levanto do chão, e se posso dividir a cidade por quartos de hora, como se me tivessem confiado a tarefa de cartografar para o resto dos perdidos, dos que estão já estoirados e não aguentam tramas prolongadas, hesitam, olham de fora, os que não podem com os nomes, mas têm por poucas palavras uma última confiança, e menos ouvidas que vistas de passagem, de umas para as outras torna-se claro como a escrita mesma é uma antiguidade, um modo de pegar pelo que outro deixou, tomar-lhe dos lábios o cigarro, das mãos a caneta, ou apenas tirar-lhe os sapatos, deitá-lo, a que ambição torturada nos submetemos?, esta transfusão fria de sangues, o nome que nos esquece, uma vida traduzida em ausências, daí este encontrão consigo mesmo, o estar-se na própria pele como quem vê comboios partir, tenho um pouco mais de cem anos, nem chego com a mão ao outro lado de mim, o que pudesse coçar está numa outra época, confundo dores com vagas lembranças, esqueci-me do que me disse e agora as suas palavras seriam tudo, apaguei por raiva, tantas cóleras, e a incapacidade de saber exactamente a quem diria algo mais que isto, que lentas de composições me falam, pinturas estalando de noite nas paredes, a escrita é para se refazer do corpo e do desejo, dessa imensa sede, bebi de um trago um copo que tinha ali há dias cozinhando os dissabores da casa, que gosto me fica na língua, escreve-se para se ser rendido, como quem está de guarda e passa um pouco da sua hora, às vezes minutos, outras vezes séculos, e não é uma coisa entre a vida e a morte, são as outras latitudes, estas sensações que nos confirmam enquanto forasteiros, um pouco tristes, injuriosos, com a sensação de se estar desaparecido e ninguém ter dado pela falta.

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