terça-feira, maio 29, 2018


Que hábeis são na arte de citar estas mentalidades recitadoras, mas isto só quando a coisa já arrefece, e os dentes se arrancam à carcaça, quando a distância ou o tempo põe a salvo os passos em volta, não sacode nem faz tremer nada, ninguém, quando tudo vira abstracção. E o sentido que a frase terá tido no seu tempo e contexto é virado contra si próprio, torna-se agora a sua antítese: um eco destrambelhado dando para o vulgar uso das gentes. Estas que se enchem de um ar tumultuoso, heróico, para logo depois cuspirem as suas facilidades, dando as costas aos exemplos e impondo ressalvas, emendas, intervalos, excepções... 
«Vós sois o sal da terra.» Quem é o sal da terra? Por mim, acho que são as pessoas mais ou menos (ou até completamente) marginais: as que protestam contra, contestam, põem dúvidas sobre, ignoram ou não levam a sério, riem de, gozam com - a sociedade onde (por acaso, dizia o outro) se encontram. Vê a gente uma cidade e repara logo que ela respira pelo lado da irregularidade. A irregularidade que cria, evidentemente. Os lugares estão cheios de bom comportamento, entradas e saídas nos escritórios, tanto de largura e altura para as intenções e os actos, os respeitosos cumprimentos a vossências - e a irremediável venda de cada um, a curto ou a longo prazo. Ele é tudo almas à comissão ou à consignação. Mas eis que aparecem os extravagantes, os originais, os bizarros, os exóticos, os despassarados, os que não, os que trazem uma lá deles no meio da cabeça esfuziante. Eles são o sal da terra. 
- Herberto Helder 
in em minúsculas - crónicas e reportagens de Herberto Helder em Angola, Porto Editora, Abril de 2018, p. 112.

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