segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Crescei e multiplicai-vos

quando ainda provocávamos inveja por sermos tão novos
aceitávamos tudo no seu sentido mais literal, confiámos demais
agora rasgamos as mãos contra o arame farpado, estrangulamo-nos
nas entrelinhas
a juventude durou enquanto soube enganar-se
escorregou lentamente e veio encontrar o fundo vazio dos bolsos
ainda nos parece que foi um fôlego tão breve, imediato e destroçado
como o partir de um prato, o som de um estranho aviso
que há-de retinir em nós para sempre
este eco daquilo que terá sido uma infância
e já não é mais que um álbum de retalhos
ficando às vezes aberto por uns dias
e que ora nos faz sorrir ora nos magoa
acabando por servir de suporte
para algumas notas, tristes recados
que escrevemos a nós mesmos, e outras
eventuais formas de prescrição como é o preenchimento
de candidaturas de emprego, boletins noticiosos e certamente
as declarações de impostos

é pouco o que na essência o tempo nos deixa
corações negligentes, afectos extraviados,
a publicidade de pseudo-emoções, a distribuição ilegal das fotocópias
dos nossos gestos mais íntimos, cada vez mais ensaiados
até se tornarem mecânicos como os relógios logo à entrada,
a devassidão dos lugares decorados acidentalmente, espaços
onde adormecíamos de cansaço, portas com as fechaduras forçadas,
os cofres que se tornaram tão inúteis como os nossos planos secretos,
as lembranças de todas as guerras em que acabámos por nos render
despojos cuidadosamente engavetados, sonhos
profanados, e os miseráveis pedaços de humanidade
que vestíamos com alguma vaidade e orgulho na outrora doce
privacidade de um reflexo frente ao espelho, tudo
em caixotes cada vez mais próximos do lixo
e, finalmente, o espelho já não é mais
que um corrector ortográfico - objects in mirror
are as lonesome as they appear


lá fora as aves são reminescências
de um passado repleto de vocações ludibriadas,
já ninguém passa as tardes à janela
nas ruas a paisagem é dominada pelo alinhamento
dos cadáveres de betão, segregações de corpos abatidos
por tóxicos que não deixam vestígios no sangue,
substâncias que nenhuma autópsia detectará, o horizonte
foi comprado por uma empresa americana
que tem as acções cotadas na bolsa, assim podemos todos
participar e ter uma quota dele!, entre nós e o horizonte
temos os automóveis, celas individuais, apartamentos,
os condomínios e as residências particulares de costas viradas
para o lado de que chove, desse lado há uns bairros sociais
e uma ou outra barraca com demolição agendada
para logo à noite

a liberdade esvai-se entre negociatas
num lugar onde sucesso significa apodrecer,
estender a mão e dá-la com um sorriso
a mãos menos gratuitas, a sorrisos com preço
tudo o que temos são fragmentos, mitos e lendas
sonhadores passivos, magnatas excêntricos
a economia, o logro do capital, as correntes
de pensamento, a escravidão do consumo
a literatura de cordel, a obsessão cor-de-rosa
o sistema, a ordem, o progresso
a gestão dos afectos, as nossas relações amorosas
em modo automático, o futuro em piloto automático
a inteligência artificial, a vida artificial
e os exponenciais lucros da morte

do lado de fora, umas infecções marginais
um ou outro poeta, nenhum artista consagrado
razoáveis mentes ílicitas fazendo os possíveis
por se relacionarem
por se manterem na fronteira da ficção científica
onde a realidade se abastece

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