terça-feira, março 28, 2023


Um silvo liga a noite das coisas que imitas,
intimações, voltas, com o dedo sujo
procuras no teu lábio o de quem falou 
deixando às palavras um raro tremor,
quem desenhou uma linha na cinza
de algum rouxinol que morreu de idade
entre outros assombros sobre a velha mesa,
e que vontade nos dá de lhe seguir o tom
colher o impacto que nos sacode
à nascença de uma frase impura e rude
até ao nó de que por fim se morre engasgado, 
com o ímpeto, a impressão descuidada,
aquela suspensão distante dos astros
e a sede absurda da luz que enfim nos acha,
isto que torna tão próximo o gesto que se faz
de tudo o que lhe escapa, esse cair
de si abaixo, rindo, como também é efeito
de algum corpo esse gozo de nos devolver
os olhos, de o copiar intimamente
e o glosar no escuro, caindo com ele
na mesma cama, e para isso lhe arrancas
o mais doce contorno, um brilho vago
como um fruto de um ramo, afundando 
as unhas na casca para que a flor
se demore, odorífera, debaixo delas
e logo com a língua cega indo pelas nervuras,
a decorar o fino recorte, o discreto prodígio 
daquilo que define o nosso gosto e anseio,
instruindo a carne a um absurdo ensejo
de ir entre as coisas da terra perseguindo
formas que nada têm de natural, mas são 
um resíduo do modo como a certas horas
a imaginação destranca todas as portas.


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