domingo, março 26, 2023


Quem quebrará o silêncio mostrando-se
capaz de lhe rearranjar os cacos,
sem trair o instante de tensão fabulosa
que impõe um gesto, a fala
que sopra em nós o pó
de uma hipótese, o murmúrio de outra vida?
Vamos de terra em terra ajudá-los
a compor os fragmentos
de um mundo perdido, sentir a falta
daqueles traços de que a raça há muito
se despediu, a extinção
e os seus malévolos caprichos, 
os lugares onde houve luta, marcas 
que nos seguem por mais uns anos,
onde também o fim da beleza começa
a impressionar-nos, como ruídos
ou ecos andrajosos
atravessando um tempo desumano,
e como alguns detalhes desconexos
persistem, se afinam dolorosamente
sem poder reconstituir o sentido original.
E depois o pedido dos que chegaram 
demasiado tarde e nos seguem
com um olhar carregado de um sentimento novo,
algum fascínio misturado com a censura
por não termos feito mais, e pedem-nos
coisas com a sua incapacidade de o exprimir,
que tenhamos o cuidado de traduzir a chuva,
certo tom de azul que os olhos humanos
não mais deterão,
estas coisas chegam a ser sentidas
quando a memória não é já fiel a nada,
e procuramos inventar quando as palavras
não reservam elas próprias
qualquer intimidade com a vida
que nos legou a desolação destes fragmentos.


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