sexta-feira, setembro 30, 2022


Já fizeste o suficiente, e isso da solidão
foi-se tornando um imenso plágio,
demasiado acidental para se esperar dele
qualquer tipo de inspiração.
Não dá para se aguentar na memória
tudo o que num momento ou noutro
nos fez diferença. Andando entre quartos,
parando junto às camas e oferecendo as mãos,
aquele que escreve sofre uma fraqueza,
deixa apodrecerem as palavras até que a carne
da linguagem se desprenda dos ossos,
entretém-se com jogos de pura possessão,
abandonado à frágil convicção das personagens,
a fragrância de um ritmo revisto tantas vezes
para perdurar além das frases,
como a mancha de um insecto
gravada na parede, como se reiventa
o moribundo sussurando a um ouvido
umas quantas palavras obscenas.
Ainda um desejo, uma última coisa,
persistir como uma flor depois de o nada
se ter abatido sobre a terra,
degraus cobertos de erva,
esse ambiente de ruína tão procurado.
A vida olha para a catástrofe em busca
de alívio, do novo alimento que só a fome
poderia descobrir por nós,
aquela raiz profunda que instantes antes 
remexia a escuridão toda, um desejo
de se ir, de ossos húmidos e a pele
puxada e fora do sítio
depois de cobrir os esqueletos
das formas mais contraditórias.
Uma flor dessas que nos deixou
o pior dos irmãos, aquele Panero
alegre debaixo das estrelas mais tristes,
dizendo-nos que o que resta 
depois da flor é uma coisa sem dentes
recordando o mistério dessa forma
quase ingénua. E segues entres os quartos,
recolhes na cratera as sílabas tremidas
desse espelho fragmentado,
a herança de quantos deixam a sua
morte de cara contra a parede
contra o mundo, e ainda
uma última pétala marcando
esta página ou aquela, um verso como este:
faço luz nas minhas próprias costas.


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