domingo, setembro 25, 2022


Anos depois o olhar descobre 
a inocência que lhe faltou, 
numa fotografia ou nuns segundos 
de filme, à luz de um isqueiro
de súbito algo de secreto se torna legível,
o que parecia frágil e desconexo,
afinal assume uma decência milagrosa
um bando de desgraçados que se tornam belos
a horas menos impiedosas, 
dão-se lume, consomem-se 
talvez porque os anjos nascem desse recuo
de volta ao interior, quando a carne
não passa de um desenho de crianças,
e as asas são gestos que de tão repetidos
as sombras parecem imitá-los,
as expressões como aves nadando à tona
dos espelhos. É belo acertar, fazer cair,
ainda mais belo fazer cair na água.
É tão suave deixar-se ir com a corrente,
navios e homens vão ao fundo.
A paixão não passa da feroz impressão
que nos fica de um relance,
a intimidade com um relâmpago 
cujo brilho perdura em nós
uma vida inteira. Depois 
o que é a beleza sem uma colher
queimada a remexer na treva,
o olhar perdido no pormenor,
no modo como só eles desfazem a cama 
roubam a pele, tecem a partir de reflexos
as misérias em que afinam a sua delicadeza.
Apenas comem fruta e doces, 
têm os dentes escuros, nódoas no rosto,
exibem-se indecorosamente
e aos seus sentimentos sabendo que
fixar mais fundo o sentido nas coisas
muda tudo,
podes filmar a boca, o leve tremor
a incerteza que adoça cada gesto,
o talento para mergulhar mais fundo,
estar perto dos que morrem
com a verga de fora
deixando nos cinzeiros os cantos 
desse sorriso luminoso que nos enternece
nos enforcados.


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