quinta-feira, janeiro 11, 2018


Um tipo desce na alta conta que de si mesmo faz e resolve ir pelas próprias costas. Dirão que não é possível, e nem faz sentido, mas garanto-vos que há maneiras. Fala um condenado, e creio que isso levanta um pouco o gás no banho-maria em que têm o vosso sangue. E mais: não vos levo muito. Uns minutos e, no fim, pela minha parte, nada restará a acrescentar. Quanto a explicações (ou motivo): é como ver-se de alto a baixo a um espelho que é de outro, sem as artimanhas, o geral relevo a que estamos habituados, usando a nosso favor uma combinação de luz e ângulos que se alcança com anos de estudos até ao doutoramento nessas distorções pessoais – todos as temos, mas alguns não passam de contínuos na instituição, e outros dão aulas, têm cátedra. Ele, o espelho (versado nas leis da compensação, pondo um pormenor à frente do quadro geral, ou, em último caso, deitando o quadro abaixo, curto circuito, a porra que for preciso), ele mentia e eu voltava. Mas há um momento em que o olhar de outro nos deixa uma nódoa e quando corremos para algum esconderijo para tirá-la, mudar de camisa, esse outro espelho já não nos cobre o flanco, antes revela como o alfinete foi além da pele: é uma mancha que irá insistir intimamente, causando uma vertigem face a essa direcção entre todas lixada. Às vezes o abismo é uma torneira que deixa um ritmo e quanto mais espaçado mais angustiante no fundo de nós. Ora, diante desse espelho, não larguei mais o fio. Puxando-o não estava a descoser-me mas a trazer à superfície um balde cheio de esterco, e só com este percebi como era fundo e estava cheio dele o poço. Há horas dessas em que nada nos livra da nossa própria investida; um comentário basta naquela fracção de segundo em que a electrificção da cerca falha, o arame farpado ou os vidros partidos revelam-se não mais que ornamentos que já não confortam quem sente os agressores do lado de dentro; o vigia na torre distraído a ver desenhos animados, os cães lambendo as mãos de quem tem também uma guloseima só para ti. Como se sabe, bátegas de chuva, um braço-de-ferro entre tempestades até embalam quem se acha protegido no interior. Tanques nas ruas não passam de moscas... Mas se uma corta a película e nos entra na alma, a gestação não precisa de mais que uns minutos. Com a testa encostada naquele espelho, com vontade de fundir a cabeça nele empurrando-a até deixar de perceber fosse o que fosse, levei os dedos todos de uma mão à boca – não sei se com o impulso primeiro de arrancar alguma coisa, um instinto para curar-me de alguma indigestão que me ameaçava o juízo –, mas acabei por me dar conta que o nojo provocou um desejo de me extinguir pelo meio mais directo, devorando-me. Isto enquanto um cínico não se metesse entre mim e esse ser primário, furioso ainda assim. A minha ideia era não dar-me hipótese de reaver a dose mínima de dignidade que nos leva a compor-mo-nos, arranjar uma desculpa e buscar santuário. Quis pôr todas as fichas em cima daquela sensação atordoante. Um desgosto arrebatador a tal ponto que, se voltado sobre algum ícone, poderia ter funcionado como uma experiência religiosa dessas que atiram connosco nalgum mosteiro tibetano. Aquilo não; era algo mais exuberante e insaciável do que essas trepidações que nos arrastam até uma sensação de vazio. O vazio ali teria sido um consolo. O que sentia era como ter-me passado para o lado do inimigo, um que é o nosso perfeito negativo. Estar ao lado dele, participando na conspiração de um final inescapável e doloroso. Algo que o outro, o do costume – esse que dá por “eu”, esse a que a cola do ego nos mantém presos –, ao recuperar os sentidos não pudesse já contrariar. Não tivesse avanço ou recuo, não pudesse senão rir-se também, virar o copo e lamber da mesa a água do seu desespero, procurando seduzir a loucura antes que a sucessão dos efeitos desencadeados passasse das cócegas a esse prurido inicial, até abrir a ferida e começar a tortura que iria pelas diversas camadas da carne até atingir o osso. Tínhamos então algumas horas. O outro estava sem defesas e assim ficaria pelo resto da noite. Uma noite para deixar a vida por dias. Então fizemos a lista daqueles agiotas com quem poderíamos contar, uns estafermos que além de perseverantes tínhamos por criativos. Os que, mais do que a reputação, cultivam do rumor à lenda uma certa apetência pelo grotesco, o género de estórias que por si só dissuadem as brincadeiras de quem quer que sobreviva um pouco acima do limiar do desespero absoluto. Eram estes magníficos estupores que queríamos alinhados como nosso pelotão. E para que o fuzilamento levasse o seu tempo, íamos ficar a dever-lhes somas das que exigem respeito e sem qualquer outra intenção que, não as pagando, em alguns dias tê-los reunidos a uma mesma mesa com um prémio magríssimo se dividido em partes iguais. Irmãmente, como se diz. É claro que, mal um soubesse, outro desconfiasse, um grau de variação na temperatura, o mais ligeiro aumento na transpiração haveria de produzir essa perturbação ínfima no ar que chega para avisar tudo o que é mosca de que vem aí merda da grossa. Não seria preciso mais do que contar até dez até que este vosso amigo desse por si engasgado com um ferro enfiado até à goela. E o plano, simplificadamente, era esse. É claro que receávamos que o gajo acordasse com a luz e o entusiasmo e viesse ver o que estava a passar-se na sala das máquinas, mas até ali permanecia calado, ressonando ou com uns rabos de frases a sair-lhe da boca, como se estivesse a devorar lagartixas de um balde de pipocas enquanto assistia à projecção do nosso filme. Tínhamos feito até – numa espécie de homenagem à propensão lírica do gajo – uma segunda lista com a série de acções beneméritas ou meramente estapafúrdias em que iríamos esbanjar a massa. A coisa chegou a um nível de pormenor que ia até às encomendas já para a manhã seguinte que esgotariam os floristas num raio de quinze quilómetros, ao ponto destes darem por si a imaginar que este ano o dia de São Valentim se adiantara. Estávamos já a antecipar-lhe os preparativos também para um funeral estupendo. E foi quando já não podíamos organizar mais coisas a partir daquela casa-de-banho que fomos obrigados a arrastá-lo para fora. Era como se dormisse, como um bêbedo derramado em ombros, mas com aquele olhar que seguiu a curva dos astros, o do tipo enrolado na carpete, a arrotar fetidamente como se o leito do rio onde irá fazer companhia aos peixes estivesse já a tratar da papelada no que toca ao processo de decomposição. Fora do apartamento dos amigos – que, de resto, se cagaram nele, e não estranharam nada –, acabámos a puxá-lo cada um por uma perna sem cuidar sequer que a cabeça não batesse aqui ou além, a nuca não soluçasse nos degraus. O corpo não era ainda uma âncora, mas foi como se o saco, de início leve, fosse colhendo lixo pelo caminho. Estava mais pesado e, não é que tivéssemos pena do idiota, mas a missão que até ali nos entretera tanto, tinha entrado na fase da burocracia, aspecto do crime que a ficção quase sempre salta à frente. Como se quem faz vida disto não tivesse a sua dose de horas na lavandaria, vigilâncias nocturnas, uma necessidade de andar a fazer recados para vítimas que ainda não sabem que o são. Desde logo era preciso descer um a um os andares da realidade, e a puta nestas alturas mostra-se um arranha-céus. Era preciso descê-la antes que pudéssemos enterrá-lo num aterro ou no primeiro canteiro. E o elevador tinha porque tinha de falhar nessa noite. É certo que há sempre uma estrada dessas mais largas onde outros imbecis conduzem como pelas próprias cabeças; como guilhotinas e autocarros, perdemos um e, felizmente, logo outro se dispõe a separar o corpo da cabeça. Mas abandonar um corpo numa linha é tão gratuito, tão sem sal no molho de tomate. Para quê servir o drama sem nenhum gosto? Dá vontade antes de ir tocar às campainhas. Sendo duas da manhã, agora que o arrastamos pelas escadas, não é improvável que nos aparecesse um barrigudo, arrancado da cama sem acreditar numa porra destas, disposto a filar a besta que não lhe tira o dedo do taarrrrriiiiiiimmm! Um gajo que só por isso nos esfolasse a menos que tivéssemos na ponta da língua uma explicação preciosa, género: tia velha, rica, recém falecida e de cuja existência ele nem suspeitava, deixou-lhe tudo. Mesmo se, em vez disso, lhe enfiássemos um murro nas trombas tão cedo quanto abrisse a porta, é difícil imaginar que depois de se ter satisfeito com um pedaço de carne que não mais reagiu, uma peúga de ossos que para ali ficara sujando-lhe o tapete, não acabássemos com o corpo num chocalho nas emergências hospitalares ou nalguma esquadra. E mesmo se isto seria um pouco melhor que um desses suicídios limpos, sem maçar ninguém, no fundo, o que é que se aproveitaria de uma morte já aparada para a estatística? Mesmo se já se está a ver como isto vai dar o nó, ficando o dito por não dito e a continuação da pena perpétua para esta besta, agora que já entrámos no sistema havemos de ficar aqui pelos fundos a jogar ao peixinho, aguardando outras abertas. E, se com os cordeirinhos das letras com que ele se mistura no recreio da choldra não se pode contar para nenhum desses motins onde metade deles acabam chinados, se ambições maiores ou vícios mais fundos também não é coisa que nutra este palerma, se nem com as putas no rés-do-chão troca mais que uns lânguidos olhares que nem elas nem nós percebemos se é o rastilho do tédio ou uma pontinha de tesão, por mais diabólica que seja a jogada, com um triste destes não se consegue deixar grande cratera. Na melhor das hipóteses mata alguém, por covardia. No fito de explicar-se e a algum desses problemas que inventa, com uma simples conta de somar acaba ele a subtrair algum a este mundo. Nada que faça o mundo cuspir o café ao ler o jornal. Uma caixa a relatar que os ânimos tinham aquecido, que uma coisa levou à outra e, na atrapalhação de gestos, um golpe escapou-se-lhe e foi fazer ninho na cabeça do outro, isso ou a caneta que fugiu e abriu um furinho debaixo da orelha, no pescoço do outro. E foi o fim de uma carreira já nem se sabe se promissora. Acabaram-se-lhe os versinhos, foi vestir o pijama dos reclusos, e isto são, por ora, fantasias, mas nem é tão raro assim: há ataques cardíacos em que quem acaba por ser a vítima foi o tipo que se voluntariou para fazer a coisa certa, prestar socorro. É esperar; vamos ver.

Sem comentários: