quarta-feira, janeiro 10, 2018


Se os há dos que por nada deste mundo enfiam o barrete, esses em que nunca nada é com eles, profissionais na arte de escapulir-se, assobiar para o lado, em safar o corpo já nem digo do manifesto mas a quaisquer efeitos secundários depois de fazerem as rondas como delegados de propaganda poética, há aqueles de nós que praticamente não temos escolha, face à tão grande relutância, qual quê, aos que só torturados dariam os nomes aos bois, e acabamos por enfiar barretes a mais, ou porque aceitamos a contradição de aparecermos como hidras por arriscarmos tantos juízos num tempo tão ventoso, ou porque não levamos no bolso o pente para, a cada rabanada, compor de imediato o chinó, acontece-nos sentir na pele os tirinhos tão hesitantes dos que vêm para as cóboiadas com pistolas de fulminantes para dar a sensação ao longe que isto anda tudo numa grande confusão quando, afinal, vai-se ver ao perto e não passa de outro cemitério de tempos mortos das crianças que nem para o recreio saíram, as que crescem como cogumelos na sombra do contínuo, com medo que um índio lhes espete uma seta na preciosa regueifa, e que ali se ficam a rabiscar velhos oestes no caderno. Ora, vamos a um dos nossos preferidos: Hugo Pinto Santos. Diz ele num desses textos que acabam na caliban quando não consegue enfiá-los nalguma das vinte (ou trinta) publicações em papel que inunda semanalmente com as suas recensões molengas: "Em 2018, assinalam-se 40 anos sobre o desaparecimento de Jorge de Sena; para o ano, é o centenário do seu nascimento. Descontem-se os campeões da comemoração, autênticos paladinos da data certa, primeiríssimos a celebrar a ocasião, por entre estudados gestos de desdém: fora dessa órbita que tudo engloba, uma das vantagens a retirar de uma efeméride será por certo a oportunidade de rever (e, em certos casos, de reaver) títulos esquecidos, ou nunca obtidos, ângulos menos previsíveis, de obras e autores assinalados." Dir-se-ia uma espargata de nível olímpico conseguisse ele fazê-la com as pernas em vez de o fazer com os dedos. Primeiro ameaça a mordida, vem embalado, como se desta ninguém o parasse, o carneiro com pele de lobo a treinar uivos de meia-noite, mas logo desgasta a voz, sai-lhe um balido e deixa cair as peles que puxara de alguma vedação. E então atira-se ele ao pasto das efemérides. Torna-se ele (mas excepcionalmente só, é claro) o dono de uma comemoração. Mas aqui queria chamar a atenção para a pequena pirueta deste mémé das recensões que parece convencido que estamos no período nem digo de ouro mas já platina da literatura portuguesa, em que por ano são publicadas umas 40 obras-primas, e originais!, coitado do Sena, fosse hoje e o Hugo sozinho tinha arrancado o homem lá dos brasis e santas bárbaras, era homenagem a torto e a direito, o homem morria-se sufocado sob o peso das medalhas... Diz ele que há por aí uma bandidagem, uns aiatolás das comemorações que são sempre os primeiros a mijar no muro das ocasiões, mas isto "por entre estudados gestos de desdém". Ora, era bom que este ascensorista que só sabe ir para cima, que eleva todo o casebre de dois pisos a arranha-céus, tivesse a paciência de dar-nos exemplos desse (nosso?) estudado desdém. Infelizmente, o rapaz está com toda a pressa, tem já outro para o Público, a Colóquio, a Ler, a Celeste, além dos serviços de jardinagem noutros canteiros, é imaginar os emails a rever com cada autor como quer o corte, as unhas, e assim entende-se que não lhe reste tempo. Mas um dia destes, nalguma dessas salas de espera entre a consulta com o elefante X e o Z, tire aí umas notas sôtor. De qualquer modo, vale a pena lembrar que é esta mascote fofa do campeonato inteiro, este carneirão que torce por todas as equipas e até pelos árbitros, que sem estudo nenhum tem mantido num desdém inqualificável tudo o que foi publicado pelas edições língua morta desde que aqui começou a ser chamado à liça pelas cagadas que lança coladas às flores que vai distribuindo à esquerda e à direita. É esta fada do lar dos letras que tem estrelas fluorescentes para todos os esquifes, mas castiga todo e qualquer autor publicado com este selo. E vem este mémé falar de desdém? Como é que um tipo se leva a sério quando alarga o seu ângulo morto a tudo o que (agora sim indiscriminadamente) vem de uma editora, e assim abdica do critério essencial para alguém que pretenda assumir-se como crítico literário? E não devia alguém assim escusar-se de participar em balanços anuais? Não devia vir uma nota no fim onde se lesse qualquer coisa como: "sua senhoria é intolerante à acrimónia, e recusa-se a considerar o que quer que haja sido publicado pela língua morta". E agora, para acabar de despir de veleidades o carneirame que, de vez em quando, se junta no coro para produzir esse uivo harmónico, fica uma citação: "Ele simplesmente acreditava que a capacidade de deixar a nossa auto-estima estrutural ser atacada e feita em cinzas era uma medida da nossa seriedade. Uma pessoa devia ser capaz de ouvir, e de aguentar, e de ultrapassar, o pior que pudesse ser dito dela." (Saul Bellow, "Ravelstein")

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