terça-feira, dezembro 24, 2013

BRINCAR COM AS ESTRELAS
 
 
Seja-me permitido falar na primeira pessoa, apesar do respeito pela lição de Pascal de que o Eu é haïssable, odioso: há algum tempo (não digo quando) as três estrelas que dei na recensão de um livro (não digo qual), por erro ou negligência inocentes passaram a cinco estrelas. Não pretendo corrigir o erro porque seria errar duas vezes: o efeito instantâneo que uma classificação produz – e não há outro – não pode ser revogado, só pode ser repetido. Percebi isso quando, ainda inexperiente nesta matéria, vi as quatro estrelas que tinha dado a um livro de poesia de Luís Quintais (agora, sim, já posso citar nomes) passar a cinco estrelas. Na edição do jornal, na semana seguinte, escrevi uma errata e, desde então, o poeta Luís Quintais passou a ser, para mim, um dos nomes da má consciência e do irreparável. Tenho quase a certeza – mas não o conheço nem ousaria dirigir-lhe qualquer palavra de esclarecimento – de que, na altura, ele me mandou, com toda a razão, meter as estrelas num sítio menos próprio e onde se extingue toda a iluminação. Dos equívocos com estrelas, poderia ainda contar que fui uma vez envolvido publicamente por uma Grande Escritora (que fez sua a máxima kantiana: “O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”) num acto de sabotagem electrónica, através do qual as cinco estrelas a que o seu livro tinha direito (segundo a justiça imanente e o juízo ponderadíssimo do crítico/a que tinha escrito sobre o livro) foram convertidos numa constelaçãozinha de três astros, coisa quase invisível sem telescópio. Felizmente, a pérfida conspiração denunciada numa entrevista pela Grande Escritora pôde ser facilmente desmentida porque o sistema informático do jornal onde eu então trabalhava registava todas as intervenções – e o computador de onde elas fossem feitas – sobre um texto, em todo o seu percurso. Da minha sabotagem, não havia nem um fraco vestígio. As estrelas são o exemplo mais eloquente do declínio da crítica literária. Não vou aqui defender a sua extinção porque seria ingenuidade não reconhecer que a crítica, tal como existe, precisa delas. Defender a extinção das estrelas sem defender um outro tipo de discurso crítico não serve de nada. Em primeiro lugar, seria necessário reconhecer que há uma diferença fundamental entre crítica e divulgação. E qualquer suplemento literário não pode prescindir de uma e de outra. Tal como não há ninguém que escreva nos suplementos literários que não pratique ora uma ora outra. Só que, ao contrário do que acontece, elas deveriam ser distinguidas com nitidez. Mas, a essa distinção, sobrepõe-se o procurado espectáculo do gosto e da opinião. Para o discurso crítico as estrelas são um obstáculo com o qual é difícil lidar; o discurso da divulgação precisa das estrelas para parecer discurso crítico. O primeiro constitui-se através de uma argumentação e nela funda todo o juízo de valor; o segundo dispensa a argumentação crítica e faz das estrelas uma asserção absoluta e autoritária. As estrelas são o instrumento do discurso do histérico. Para a crítica, elas são a maior parte das vezes um empecilho. Um exemplo: se quiser ser ambíguo, se não quiser dizer se gostei muito ou pouco de um livro – porque de facto essa indecidibilidade mantém-se muitas vezes e não tem que ser resolvida –, terei que dar estrelas arbitrariamente. E se passasse a fazer o jogo da arbitrariedade e dissolvesse as estrelas numa paródia? Caro Luís Quintais, se ler este texto, saiba que eu posso não ter querido corrigir nada porque não havia nada a corrigir, apenas a baralhar.

 - António Guerreiro
in Ípsilon (20.12.2013)  

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